O globo, n. 31790, 20/08/2020. Sociedade, p. 9

 

Risco subestimado

Johanns Eller

20/08/2020

 

 

Estudo mostra que crianças têm alta carga viral e podem ser mais contagiosas do que adultos

 Uma pesquisa conduzida pela Escola Médica da Universidade Harvard (EUA), uma das mais conceituadas do mundo, concluiu que o potencial de disseminação do novo coronavírus pelas crianças foi largamente subestimado nos últimos cinco meses da pandemia de Covid-19.

Ao contrário do que diferentes estudos concluíram, o trabalho, apresentado pelos autores como o mais abrangente sobre o assunto até o momento, apresenta evidências sólidas de que crianças podem ser muito mais contagiosas do que adultos — inclusive aqueles com quadro severo da doença — ainda que apresentem apenas sintomas leves.

O artigo, submetido ao periódico científico “Journal of Pediatrics” nesta quintafeira, foi escrito por pesquisadores do Hospital Geral de Massachusetts, que integra a Escola Médica de Harvard. O estudo teve o apoio de diversas instituições americanas, incluindo o Centro de Prevenção e Controle de Doenças e o Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas.

O trabalho avaliou 192 indivíduos de 0 a 22 anos, dos quais 49 testaram positivo para a Covid-19. Metade deles apresentou febre, sintoma que pode ser confundido com alergias e gripes como a do vírus Influenza.

Ao todo, 53% deles estavam frequentando a escola. Outros 18 deram entrada na unidade com a chamada Síndrome Inflamatória Multissistêmica Pediátrica (SIM-P), uma complicação da Covid-19 em crianças.

Os cientistas encontraram níveis de carga viral do Sars-CoV-2 consideravelmente mais altos nas vias respiratórias de crianças nas fases iniciais da doença do que nas de adultos internados em unidades de terapia-intensiva. O alojamento do patógeno nas vias aéreas é um dos principais catalisadores de sua transmissão.

Apenas 27% das crianças que testaram positivo para a Covid-19 por meio do teste RT-PCR, que contabiliza a carga viral, tinham uma comorbidade específica — a obesidade. Nenhuma delas tinha doenças cardíacas, pressão alta ou diabetes.

Em média, a maioria dos que contraíram a doença no grupo amostral tinha entre 11 e 16 anos, embora a doença não tenha poupado nem mesmo bebês com menos de um ano. Já a SIM-P afetou primordialmente aqueles entre 1 e 4 anos de idade. No caso da síndrome, a obesidade não pareceu desempenhar um papel importante.

Para os autores, boa parte dos cientistas incorreram em um erro ao analisar a evolução epidemiológica da pandemia sob a perspectiva sintomática da doença.

Acreditava-se que o número reduzido de receptores do coronavírus nas crianças —a chamada proteína ACE2, pela qual a proteína spike do Sars-CoV-2 entra nas células humanas — levaria a uma menor carga viral, mas o estudo de Harvard quebra esta correlação e alerta que elas podem ser mais contagiosas independentemente da suscetibilidade à Covid-19.

Os autores da pesquisa Alessio Fasano, líder do grupo, e a médica Lael Yonker, que liderou o trabalho, afirmaram ao GLOBO,pore-mail,queodescompasso ocorreu em função da limitação de testes no princípio da pandemia, quando eram testados apenas pacientes suspeitos em estado grave.

“Baseados nessa abordagem epidemiológica, chegamos à conclusão de que a pandemia da Covid-19 parecia se disseminar pela infecção de adultos. A partir da testagem de crianças que viviam em áreas com grandes taxas de contágio, em contato com pessoas que contraíram a doença ou apresentaram sintomas gripais, conseguimos demonstrar que crianças podem se infectar tanto quanto adultos e ter uma carga viral alta”, afirmaram os autores, ambos pediatras do Hospital Geral de Massachusetts.

DECISÃO ARRISCADA

O argumento de que crianças transmitiriam menos a doença pesou na decisão de se reabrir escolas em diferentes países. Alguns deles tiveram experiências bem-sucedidas,como a Alemanha e a Dinamarca, enquanto outros viram novos surtos eclodirem após falhas nas medidas sanitárias de prevenção, como Israel.

A descoberta, afirmam os autores, indica que o retorno às atividades pode se tornar um vetor de transmissão do coronavírus dentro e fora dos muros da escola, afetando funcionários, professores e a família dos estudantes.

“Se precauções adequadas não forem adotadas quando osalunosvoltaremàescola,as crianças podem causar a próxima onda da pandemia de Covid-19”, alertaram Fasano e Lael. “Nosso estudo demonstra que o monitoramento de sintomas, incluindo a checagem de temperatura, não é confiável para identificar a doença em crianças.”

As medidas preventivas devem contemplar a testagem rígida e frequente dos alunos, o uso de máscaras, uma rotina de higienização das mãos e o distanciamento social.