O globo, n. 31793, 23/08/2020. País, p. 8

 

Policiais antifascistas apontam perseguições

Vinicius Sassine

23/08/2020

 

 

Agentes que assinaram manifestos citados em dossiê do Ministério da Justiça, considerado ilegal pelo Supremo, afirmam que já sofrem retaliações nas suas corporações por causa de suas posições políticas

 Ao analisarem um dossiê do Ministério da Justiça sobre profissionais da segurança pública antifascistas, em julgamento nesta semana, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) consideraram a prática ilegal e alertaram para o risco de perseguições políticas no serviço público. Contudo, policiais envolvidos no movimento antifascista e citados no relatório de inteligência do Ministério da Justiça afirmam que já sofrem retaliações nas suas corporações. O GLOBO recolheu relatos de episódios na Polícia Rodoviária Federal (PRF) e em Polícias Civis e Militares do país.

Os agentes são alvos de investigação policial, demissão de cargo de confiança, sindicâncias administrativas, exclusão em seleção para instrutores de cursos de formação ou transferência para a reserva. Os integrantes do grupo chamado“policiais antifascismo” atribuem esses fatos à participação no movimento, monitorado pelo governo federal. O dossiê sob reos antifascistas lista mais de 500 policiais e atribui a eles um risco de violência, inclusive com a possibilidade de atuação de“black blocs” em eventuais protestos contra Bolsonaro —apesar de não haver qualquer relato nesse sentido.

Nos estados, a atuação dos policiais antifascistas também é alvo de vigilância e de ações de investigação e exclusão de promoções na carreira. Para esses policiais —a maioria fala na condição de anonimato por temer mais represálias —, trata-se de perseguição e retaliação. Eles relatam pressão dos próprios colegas de farda, mais alinhados ao bolsonarismo. De acordo com um estudo recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 41% dos PMs de baixa patente no país são bolsonaristas, e 12% endossam pautas mais radicais, como o fechamento do Congresso e do STF.

EPISÓDIOS PELO PAÍS

Na Polícia Rodoviária Federal, uma policial foi exonerada de um cargo de confiança na Superintendência da Bahia — chefe do setor de análise técnica, o equivalente a uma assessoria jurídica —menos de um mês depois de assinar o manifesto mais robusto até agora dos policiais antifascismo. O texto, elaborado por sindicalistas da área de segurança pública, tornou-se público em 5 de junho, e leva mais de 500 assinaturas de policiais rodoviários, federais, civis, militares, bombeiros, peritos, papiloscopistas e agentes penitenciários. Em 2 de julho, a policial foi exonerada da função de confiança, exercida há mais de um ano e meio .“A nomeação e exoneração são atos discricionários do superintendente regional”, diz a PRF, por meio da assessoria de imprensa.

Uma quantidade expressiva de policiais rodoviários, 42, assina o manifesto. Duas semanas depois da divulgação, a PRF encerrou um processo de seleção de instrutores para seus cursos de formação, uma atividade que remunera bem os policiais, com o equivalente a um salário extra. Pelo menos quatro policiais que assinaram o manifesto ejá tinham sido instrutores em anos anteriores não foram chamados —os agentes ve em motivação política na decisão. Também há relatos de retenção de indicação de nomes de policiais antifascistas para comissões regionais da PR F, como a de valorização da mulher. Segundo a instituição, a seleção de instrutores “se deu de forma isonômica a todos que compõem o quadro de docentes da instituição”. “Houve ressalvas apenas em casos de processo disciplinar, grupo de risco para Covid e de não possuírem carga horária suficiente e capacidade técnica para a disciplina”, afirma a PRF, que também nega “retardo” na composição de comissões. No Paraná, um líder local dos policiais antifascismo foi aposentado pela PM, antes dos 30 anos de idade, após publicar textos críticos a Bolsonaro. Martel Alexandre Del Colle diz que começou a ser transferido entre unidades a partir do momento em que ficou mais ativo nas redes sociais, criticando programas institucionais das PMs, como os voltados ao combate às drogas. No ano passado, após uma internação por depressão, foi aposentado por invalidez, passando a receber um terço do salário. Ele responde a processos administrativos disciplinares, um deles por ter “demorado” a aceitar uma transferência, segundo o policial. A mudança era retaliativa, diz. A PM diz que a aposentadoria precoce foi definida a partir de uma perícia médica.

“A PM do Paraná, com efetivo superior a 20 mil homens, cumpre o comando constitucional de liberdade de manifestação e pensamento, só submetendo ao devido processo legal os militares que, em tese, cometerem crime militar ou transgressão disciplinar”, diz, por meio da assessoria de imprensa. — Respondo a dois processos, um deles com desdobramento na esfera criminal. Os processos buscam me excluir em definitivo da PM, o que me impediria, por exemplo, de fazer concurso para a Polícia Civil —afirma Del Colle.

INVESTIGAÇÃO DO MP

Em 28 de abril, um inquérito foi instaurado na Polícia Civil do Rio Grande do Norte para investigar a atuação de 23 policiais antifascistas, a partir de um relatório anterior do Ministério Público( MP) estadual. A portaria que instaurou o inquérito cita ainda que a direção da Polícia Civil encaminhou o documento do MP à Corregedoria da Secretaria de Segurança Pública, onde um processo foi aberto.

O relatório do MP local reproduz nomes, fotos, endereços e postagens dos policiais em redes sociais com críticas a pessoas contrárias ao isolamento social durante a pandemia de Covid-19. Para o MP, ao usar expressões como “brigada antifascista”, disposta a “mandar um recado” a manifestantes integrantes de uma carreata anti-isolamento, o movimento pode ter se constituído em uma atividade paramilitar. Os policiais, então, passaram a ser investigados não somente pelo MP, mas também pelo sistema de polícia que integram. A reportagem questionou a Polícia Civil do estado sobre o inquérito, mas não houve resposta.

O policial civil Leonel Radde, que atua na Polícia Civil no Rio Grande do Sul, é um dos poucos que falam abertamente sobre as sindicâncias a que responde, atribuídas por ele a sua participação no movimento. Radde está licenciado do cargo de agente do Departamento de Homicídios em Porto Alegre; ele é pré-candidato a vereador pelo PT e já foi candidato em 2018 a deputado estadual. Segundo ele, as sindicâncias o acusam de usar a instituição para“estimular a violência”. Procurada, a Polícia Civil do RS não respondeu.

—Eu já fui chamado pela direção do departamento para me dizerem que minha atuação no movimento impediu duas promoções. E também já ouvi de gente da área de inteligência que eu era monitorado, que se houvesse algum deslize iriam me “derrubar” — afirmou o policial.

Há relatos de casos na Polícia Rodoviária e nas polícias militares e civis nos estados