O Estado de São Paulo, n.46273, 26/06/2020. Política, p.A8

 

Eles não querem ser ridicularizados

Eugênio Bucci

26/06/2020

 

 

O Projeto de Lei (PL) com o propósito de combater as fake news na Internet não é bom. Vai restringir a liberdade de expressão. Os senadores e deputados que defendem o projeto talvez acalentem a boa intenção de proteger a democracia. É compreensível. De fato, o uso industrial de fake news pelas organizações de extrema direita contrárias à democracia (como as milícias virtuais do bolsonarismo) atenta diariamente contra as instituições do Estado Democrático de Direito e distribui calúnias de forma anônima e torpe. Essa prática abala os fundamentos da convivência civilizada e favorece os discursos de ódio, a apologia da ditadura militar e a necropolítica. Mas o projeto, cuja votação foi adiada, não ajuda em nada. Na verdade, atrapalha.

Entre outras medidas absurdas, o PL estabelece, em seu artigo 36 (nas disposições finais) que “é vedada a veiculação de propaganda eleitoral no rádio e na televisão que possa degradar ou ridicularizar candidatos” – quem desobedecer pode levar uma multa de até 1 milhão de reais.

Apenas para registro: propaganda eleitoral no rádio e na televisão não tem nada a ver com internet e fake news. Mesmo assim, sigamos adiante. A vedação à propaganda eleitoral que “ridicularize” candidato já estava na lei eleitoral (Lei 0594, de 1997), embora sem a mesma multa. Rigorosamente, o verbo “ridicularizar” não deveria estar lá. O verbo “ridicularizar” não se presta à melhor técnica legislativa.

Tanto não se presta que o artigo 45 da mesma lei eleitoral não deu certo. O artigo 45 vedava que as emissoras de rádio e televisão “ridicularizassem” candidatos. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional essa proibição (ADIN 4451). A “ridicularização” do artigo 53 também deveria ser declarada inconstitucional. Pense bem o improvável leitor: o que é “ridicularizar”, afinal? Dizer que um senador não pensa direito é ridicularizar? Dizer que querem aprovar um projeto de lei na calada da noite, meio no tapetão, com um texto que foi mal costurado 24 horas antes, é ridicularizar? Dizer que isso parece comédia de mau gosto é ridicularizar?

Esse tipo de coisa levanta dúvidas horripilantes. O PL quer conter as fake news ou quer facilitar a reeleição perpétua dos candidatos ridículos? O ridículo por acaso fica menos ridículo se todos estamos proibidos de chamálo de ridículo? E por que os candidatos não podem ser ridicularizados se a gente pode? Os candidatos não são iguais a nós perante a lei? O propósito geral é resguardar a democracia ou blindar políticos às críticas? Data vênia, a bandeira “contrarridicularizatória” em causa própria não deixa de ser, ela também, um tanto ridícula.

Mas não é só. Desgraçadamente, não é só. Concedamos que, em relação às versões anteriores, a novíssima redação do PL até que registrou melhoras. Evitou, como diz o relatório inicial, atribuir às plataformas (“provedores”) “o papel de protetores da sociedade, principalmente quanto à classificação do que seja desinformação”. Nisso, a intenção dos senadores se mostra razoável. O texto também fala em defesa da privacidade dos usuários, o que também prima pela sensatez. Mesmo assim, riscos para a invasão de privacidade continuam no projeto. A tentativa de identificar todas as contas por meio de um número de telefone celular é um exemplo. Por quê? A lei vigente já estabelece, permitindo a identificação do usuário quando exigida por medida judicial. Não há motivo para ir além daquilo que a legislação em vigor já estabelece.

Há tantos problemas nesse projeto de lei, mas tantos, que anteontem (quarta-feira), no final do dia, começou a circular um abaixo-assinado pedindo mais tempo para que a sociedade e o mercado discutam melhor o assunto. Subscrevem documento entidades, empresas e pessoas que quase não têm concordâncias entre si – quase nenhuma a não ser esta: precisamos conversar melhor sobre isso.

Talvez o melhor caminho não seja punir conteúdos (o que esse PL pretende fazer), mas enquadrar e punir as práticas desleais, maliciosas e ilegais. A lei seria mais eficaz se deixasse de lado a pretensão de qualificar os “conteúdos” (como saber se uma frase “ridiculariza” ou não um candidato) e cuidasse de definir formas factíveis de prevenir o uso ilegal de robôs, o disparo em massa (fora das regras) de mensagens, o uso de dados de usuários obtidos ilegalmente para impulsionar propaganda. O foco talvez devesse estar no chamado “comportamento abusivo” (essas práticas desleais ou ilegais) e não no teor opinativo das mensagens. Por tudo isso, um pouco mais de calma não seria ruim.

É JORNALISTA, ARTICULISTA DO ESTADÃO E PROFESSOR TITULAR DA ECA-USP