O globo, n. 31793, 23/08/2020. Sociedade, p. 14

 

Infância roubada

23/08/2020

 

 

Direito a aborto não e informado a todas as vitimas

A saga da menina de 10 anos que precisou viajar do Espírito Santo a Pernambuco para interromper — legalmente —uma gravidez fruto de estupro, na semana passada, é só uma entre milhares de histórias de meninas brasileiras vítimas de abuso sexual. O GLOBO ouviu os depoimentos de duas adolescentes que engravidaram antes dos 13 anos —uma delas, aos 11 —e tiveram suas histórias escritas de maneiras muito diferentes. À primeira foi oferecida a opção do aborto legal; à segunda, não. As suas identidades foram preservadas. Em 2019, segundo dados do DataSus, 19.329 meninas de 10 a 14 anos tiveram filhos.

Toda atividade sexual com menor de 14 anos é considerada estupro de vulnerável, “sendo irrelevante eventual consentimento da vítima”, segundo o Superior Tribunal de Justiça. Ou seja, todas as quase 20 mil meninas tinham direito ao aborto, previsto por lei em caso de estupro. Especialistas afirmam, porém, que essas meninas raramente são informadas desse direito. Além disso, há outros problemas no tratamento que a Saúde e a Justiça oferecem a essas crianças, como depoimentos repetidos desnecessariamente ou recolhimento a abrigo de forma sistemática.

— Se a menina chega a um serviço de saúde e está grávida antes dos 14 anos, o profissional de saúde deve saber que a gestação é fruto de estupro de vulnerável. A equipe tem que fazer o acolhimento, de preferência com equipe multidisciplinar — afirma a ginecologista e obstetra Helena Paro, coordenadora do Núcleo de Atenção Integral a Vítimas de  Agressão Sexual do HCU da Universidade Federal de Uberlândia.

—Depois, é necessário explicar as alternativas que ela tem: manter a gravidez e ficar com a criança, manter a gravidez e entregar para adoção ou interromper a gravidez de maneira segura. A equipe médica registra a notificação de violência sexual e notifica o Conselho Tutelar ou o Ministério Público, que dará seguimento à investigação do crime.

Se a menina quiser interromper a gravidez e houver consentimento do responsável legal, cabe à equipe médica encaminhá-la a um serviço de referência. Não há necessidade de procurar a Justiça. —Sabendo que está grávida já é estupro, não preciso examinar a vagina para ver se o hímen rompeu ou procurar hematoma. A menina só tem condição de estar grávida se teve relação —diz Paro.

AMANDA*, 17 ANOS

‘Eu tinha 11 anos. Foi meu pai quem me engravidou. Abortar foi o melhor a fazer’

Eu tinha 11 anos quando engravidei. Estava passando mal, e meu pai falou: “Você está grávida. Quero ver como vai contar isso para os outros”. Foi ele quem me engravidou. Abusava de mim há três anos. No dia seguinte, ele começou a me dar uns remédios abortivos, uns chás, mas eu vomitava tudo. Uma semana depois, fui conversar com a minha avó. Eu não conseguia falar, ela meio que adivinhou. Me perguntou se alguém tinha feito alguma coisa comigo e eu balancei a cabeça que sim. Ela perguntou: “Foi seu pai?”. Balancei a cabeça de novo. No dia seguinte, fomos para a delegacia denunciar. Depois, ao hospital, onde fiz os exames. No dia seguinte, a polícia prendeu meu pai. Minha mãe também estava grávida. Fui internada, grávida de oito semanas. Providenciaram  a autorização para o aborto, e minha avó decidiu que eu ia fazer. Ninguém me perguntou, mas foi o melhor. Eu tinha 11 anos, se tivesse tido um filho ia ter atrapalhado muito minha infância. Fiz o aborto. Fiquei muito tempo com dor. Tive hemorragia e acabei internada uns dois meses. Era bem desconfortável, porque, além do médico que me examinava, tinha estagiários por ali. Me tratei por quase um ano com uma psicóloga. Meu pai ficou preso. O papel que chegou em casa dizia que a pena dele era de 27 anos, mas nunca me senti segura. Tenho medo.

* Nome fictício

ÁGATA*, 15 ANOS

‘Se voltasse ao passado, eu não teria meu filho. E não teria me envolvido com o pai dele. Eu era uma criança’

Fiquei grávida aos 13 anos. Ninguém falou sobre aborto, e, se falasse, acho que eu não ia aceitar. Não queria ficar grávida, mas pensava “já que veio, tenho que cuidar”. O pai tinha 26 anos, morava perto de mim, e a gente meio que namorava. Quando descobri que estava grávida, ele já tinha ido morar em outro lugar. Continuei indo à escola, parei pouco antes de meu filho nascer e ainda não consegui voltar.

Uns meses depois do nascimento, tive que ir para um abrigo com ele porque consideraram que eu estava em situação de risco —eu estava meio que namorando um outro homem mais velho, de 24 anos. Fiquei um ano em dois abrigos, sempre com meu filho. Mas deu um problema em um deles: eu saí uma tarde, me atrasei, voltei depois que escureceu, e cortaram minhas saídas. Não aguentei ficar presa e fugi, só que deixei meu filho, que está com 1 ano e 8 meses.

Achava que quando ficasse maior de idade eu poderia pegá-lo de volta, aí me explicaram que não podia e eu mudei de ideia. Agora estou na casa da minha mãe, tenho que esperar uma audiência para ficar com ele. Se voltasse ao passado, eu não teria meu filho. Também não teria me envolvido com o pai dele, eu era muito nova. Era uma criança. Mas agora que ele está aqui eu não quero mais abrir mão dele. Quero voltar a estudar, ter minha casa, e que ele venha comigo. * Nome fictício