Correio braziliense, n. 20931, 13/09/2020. Mundo, p. 12

 

Teste para o czar

Rodrigo Craveiro 

13/09/2020

 

 

Sob o impacto do envenenamento de Alexei Navalny, o principal líder da oposição, a Rússia vai às urnas, a partir de hoje, para renovar os deputados dos parlamentos em 23 das 85 regiões do país e para escolher dezenas de governadores locais. Apesar de não serem tão importantes quanto o pleito parlamentar que ocorrerá em 2021, as eleições regionais servem de termômetro para Vladimir Putin. Com mais de 1 milhão de casos de covid-19 confirmados e 18,2 mil mortes, a Rússia já sofria o impacto da crise econômica, agravada pela pandemia. Além disso, os escândalos de corrupção, os protestos que se espalham pelo território russo e a perseguição política aos opositores emprestam tensão ao contexto eleitoral. Na terça-feira, duas pessoas foram hospitalizadas depois que um homem lançou uma garrafa com “produto químico” durante uma reunião de 50 militantes do Fundo Anticorrupção (FBK), entidade criada por Navalny, em Novosibirsk (Sibéria). No dia seguinte, um aliado de Navalny foi espancado por desconhecidos, em Chelyabinsk (leste), depois de sofrer ameaças por semanas.

Em mensagem publicada no Instagram, pouco antes de beber um chá supostamente envenenado, Navalny dirigiu-se aos russos, a 25 dias das eleições. “O partido no poder tem muito dinheiro, mas nós podemos apenas contar com a ajuda de gente boa e honesta. Trapaceiros não vão expulsar a si mesmos do poder!”, escreveu o oposito, referindo-se à Rússia Unida, de Putin. A legenda governista segue como favorita na maioria das regiões, mas pode perder influência. A votação ocorre dois meses depois do referendo constitucional que permitirá a Putin ser reeleito até 2036, ao “zerar” os mandatos do presidente.

“Estas serão eleições incomuns. Em primeiro lugar, elas durarão três dias. Por isso, as autoridades precisam ampliar as possibilidades de assegurar o resultado das urnas. Em segundo lugar, eles têm de legitimar as novas emendas constitucionais, que fortaleceram a verticalidade de poder e seu controle social”, explicou ao Correio Lilia Shevtsova, chefe do Programa de Política Doméstica Russa do Carnegie Endowment for International Peace (CEIP, em Moscou).

Popularidade

Segundo ela, as eleições precisarão garantir o apoio da Rússia ao regime de Putin, após o endosso de seu direito ao poder vitalício. “Elas são um evento formidável. As votações ocorrerão em 83 regiões e serão disponibilizadas  9 mil urnas para as escolhas das legislaturas locais, para a Duma do Estado (Câmara baixa do Parlamento) e para os governadores. “O Kremlin tem se engajado em uma grande campanha para tentar prevenir a ascensão de qualquer adversário político. A eleição demonstrará se Putin realmente conseguiu esmagar tudo o que é oposição na cena política”, disse Shevtsova.

O historiador David Satter —  especialista do Hudson Institute (Nova York) e autor de Darkness at Dawn: the Rise of the Russian Criminal State (“Escuridão ao amanhecer: A ascensão do Estado criminoso russo) — classifica as eleições de hoje como “um teste de popularidade para Putin”, face à desvalorização real da renda do trabalhador russo, do aumento da idade de aposentadoria e da pandemia de coronavírus. “O Rússia Unida detém maioria no Parlamento nacional, mas sua popularidade despencou para 30,5% no mês passado, de acordo com as pesquisas. O partido obteve 54,2%  dos votos nas eleições parlamentares de 2016. Isso significa que outros partidos podem chegar ao poder em algumas regiões”, afirmou ao Correio.

Ressentimento

Satter entende que as eleições regionais provavelmente darão uma indicação do nível de ressentimento contra o regime, particularmente se outros partidos conquistarem a maioria nos parlamentos de algumas das 23 regiões. Para o especialista norte-americano, o envenenamento de Navalny pode ajudar a galvanizar os protestos da oposição. No entanto, ele acredita que o motivo dos protestos precisa ser algo que afete interesses de uma camada mais ampla da população. “Navalny é, de longe, o único líder russo capaz de levar o povo à rua. Ele poderia voltar a desempenhar essa tarefa. O seu envenenamento foi uma tentativa de intimidar a população”, comenta. Ainda segundo Satter, Putin utiliza o controle sobre os três ramos do governo para marginalizar ou eliminar outros oponentes políticos em potencial.

Shevtsova aposta que o Kremlin detém poderosos recursos para a própria sobrevivência. No entanto, ela vê a máquina estatal russa como perdida ante o acúmulo de crises. “A pandemia torna a situação ainda mais grave. Navalny também tornou-se um problema pior para Putin, pois todos sabem que ele foi envenenado pelo Estado. São comuns assédios, ameaças e provocações para que os opositores abandonem o país”, declarou. A especialista do CEIP avalia que os russos sentem raiva pelo envenenamento de Navalny, mas a frustração e o cansaço as demovem de uma reação em massa. “Sob a perspectiva da tentativa de assassinato, isso mina a confiança no Kremlin e tende a aumentar a indignação pública. “O problema é que Navalny não se mostra como figura consolidadora da oposição. É um solitário. Isso pode, parcialmente, explicar o motivo pelo qual não há uma frente unidade de protesto em reação ao seu envenenamento”, acrescentou Shevtsova.

Pontos de vista

Por David Satter

Monopólio em xeque

“A partir de hoje, até terça-feira, a Rússia realizará dezenas de eleições para governos locais e para parlamentos em 23 das 85 regiões do país. Em algumas delas, particularmente em Irkutsk, Komi e Arkhangelsk, os candidatos apoiados pelo Kremlin enfrentam graves desafios. A oposição tem encorajado os eleitores a afluírem às urnas e a votarem em outros partidos, que não seja o Rússia Unida (do presidente Vladimir Putin). Mesmo que as lideranças desses partidos estejam prontas para cooperar com o chefe de Estado. A meta é enfraquecer o monopólio do poder de Putin.”

Especialista do Hudson Institute, historiador e autor de Darkness at Dawn: the Rise of the Russian Criminal State (“Escuridão ao amanhecer: A ascensão do Estado criminoso russo)

Por Lilia Shevtsova

Repressão a caminho

“Não podemos prever eventos políticos na Rússia devido à falta de análise séria do humor das pessoas. Todas as vezes, a explosão de protestos torna-se inesperada para nós. Os russos estão frustrados e nervosos. Em algumas ocasiões, eles mantêm a raiva para si mesmos. Outras vezes, tomam as ruas. Os protestos em Khabarovsk já duram dois meses! Existe a chance de que, em algumas regiões, como Irkutsk e Arkhangelsk, as pessoas mostrem irritação com uma fraude eleitoral. As pessoas podem ir para a rua. E daí? Nada acontece. As autoridades tentarão esperar esses protestos ou reprimi-los.

Chefe do Programa de Política Doméstica Russa do Carnegie Endowment for International Peace (em Moscou)