Correio braziliense, n. 20934, 16/09/2020. Política, p. 3

 

Um ministro no chuveiro

Simone Kafruni

Rosana Hessel 

16/09/2020

 

 

O ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmou que o cartão vermelho que o presidente Jair Bolsonaro anunciou pela manhã não era endereçado a ele, mas ao programa Renda Brasil, que estava em estudo pela equipe econômica para substituir o Bolsa Família e outros benefícios após o fim do auxílio emergencial. Segundo o ministro, houve uma conexão equivocada entre a PEC do Pacto Federativo, que propõe a desvinculação e desindexação do orçamento, com o Renda Brasil. “Houve uma barulheira, porque estão fazendo conexões de pontos que não são conectados. Aí o presidente reagiu da forma dele, porque não quer ser acusado de demagogo e já havia dito que não vai tirar dos pobres para dar aos paupérrimos. Então, acabou o Renda Brasil. O cartão vermelho não foi para mim”, afirmou.

Para o ministro, a decisão do presidente foi de responsabilidade fiscal. “Não vou querer anabolizar o Renda Brasil tentando uma popularidade falsa em cima de um conceito de irresponsabilidade fiscal. Então, o presidente abre mão se tiver que ser irresponsável. Não vou furar o teto para fazer artificialmente o Renda Brasil e também não vou tirar dos pobres. Então, quando acabar o auxílio emergencial, a gente volta para o Bolsa Família”, completou Guedes.

O secretário especial da Fazenda, Waldery Rodrigues, pode pagar o pato da confusão sobre o vazamento da proposta de congelamento das aposentadorias para incluir o programa Renda Brasil no Orçamento de 2021. A dúvida nos corredores do Bloco P da Esplanada dos Ministérios é se o ministro da Economia, Paulo Guedes, vai entregar a cabeça Waldery para Bolsonaro, como ele fez com o ex-secretário da Receita Federal, Marcos Cintra, no ano passado. Naquela época, o chefe do Executivo irritou-se com a informação de que a proposta de reforma tributária previa a criação de um imposto nos moldes da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), extinta em 2007, mas que é uma ideia defendida não apenas por Cintra, mas por Guedes também, de acordo com interlocutores do ministro.

Após a reunião com Bolsonaro, Paulo Guedes tratou logo de afirmar que cartão vermelho “não era para ele”, jogando o secretário Waldery na fogueira. Engenheiro formado pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e doutor em economia pela Universidade de Brasília (UnB), o secretário de Fazenda é economista sênior do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e integra o governo desde a equipe de transição.

É à secretaria especial chefiada por ele que está subordinado o Tesouro Nacional, que detém a chave do cofre da União. Ontem, durante uma longa conversa com Bolsonaro pela manhã, Guedes defendeu o subordinado, mas não há certeza da permanência de Waldery na equipe econômica, que não é uma unanimidade entre os técnicos da pasta.

“Carrinho”

Não é a primeira vez que o governo faz analogias futebolísticas. Em agosto, quando criticou a proposta de Guedes para acabar com o abono salarial para criar o Renda Brasil, dizendo que não ia tirar de pobre para dar a paupérrimo, Bolsonaro já tinha dado uma advertência para a equipe econômica. Na época, Paulo Guedes classificou a reprimenda em público do chefe do Executivo como “falta grave”, para uma espécie de “carrinho”.

No campo das metáforas esportivas, analistas avaliam que Bolsonaro mandou a equipe de Guedes “direto para o chuveiro”. “Conhecida a coerência de Bolsonaro com o liberalismo, o mercado sabe que o teto de gastos está sujeito a chuvas e trovoadas em seu tortuoso caminho. Dada a popularidade do presidente, um caminho buscando as linhas de menor resistência, de um lado, e maior aceitação, de outro, parece ser o futuro”, destacou o economista-chefe do Banco Fator, José Francisco Lima Gonçalves.

Ontem, Waldery Rodrigues deveria realizar uma videoconferência para comentar sobre o novo relatório com projeções macroeconômicas da Secretaria de Política Econômica (SPE), que manteve em 4,7% a previsão de queda do Produto Interno Bruto (PIB) neste ano. Mas ele não compareceu. Coube ao chefe da SPE, Adolfo Sachsida, comentar o episódio. “O que me parece que o presidente Bolsonaro coloca corretamente é que as discussões não podem ser públicas. Você não pode ficar lançando ideias publicamente. Acho que foi isso o que ele deixou claro”, afirmou. Segundo ele, o presidente “é um parceiro pró-mercado” e o governo continuará avançando na pauta de reformas.

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Luz amarela no Congresso 

Luiz Calcagno

Marina Barbosa 

16/09/2020

 

 

A crise política entre o presidente da República e o ministro da Economia, Paulo Guedes, acendeu a luz amarela das reformas econômicas no Congresso. Primeiro porque o tom reformista da Câmara e do Senado coincide com o da equipe da pasta, que se desgasta com Jair Bolsonaro à medida que a crise provocada pela pandemia de coronavírus se agrava. Depois, porque para certas pautas como a reforma tributária caminharem, é preciso que o chefe do Executivo esteja “engajado”, como definiu o líder do Novo, Paulo Ganime (RJ).

Ganime lembra que a pauta liberal foi um dos motivos de Bolsonaro se eleger. “A gente quer muito que o governo mantenha a linha que o elegeu, que é liberal. O governo perdeu nomes importantes, Paulo Uebel e Salim Mattar, e esperamos não perder o Paulo Guedes e o Waldery”, afirma. “Se o presidente não está engajado com as pautas econômicas, de reforma, é difícil acreditar que a equipe econômica vai ter força para implantar”, completa.

 O 1º vice-líder do Cidadania no Senado, senador Alessandro Vieira (SE) concorda. “Os projetos que dependem da iniciativa do Executivo não avançam enquanto o presidente não definir uma posição política e econômica. Mas, uma revisão do Bolsa Família pode tramitar tranquilamente”, acredita.

Líder da minoria no Congresso, o deputado Carlos Zarattini (PT-SP) vê o presidente em uma situação complicada. “A solução dos assessores tira dos aposentados. Bolsonaro sabe que não tem condições políticas de fazer isso. Tem de aumentar o imposto dos bilionários, e isso eles não querem fazer. Quem sofre é o povo”, criticou.

Os integrantes da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Renda Básica seguem dispostos a avançar com os projetos que tentam garantir o pagamento da renda básica no Brasil. E eles dizem que é possível fazer isso por meio de projetos que já estão no Parlamento. Os parlamentares acrescentam que não é preciso criar um novo programa como o Renda Brasil para garantir a renda básica. Basta atualizar os critérios do Bolsa Família. E já há proposta nesse sentido tramitando na Câmara. É o PL 6072/2019, apresentado no ano passado.

 A medida, contudo, também aumentaria a necessidade de recursos do Bolsa Família.  A Frente em Defesa da Renda Básica garante que é possível bancar esses ajustes sem reduzir benefícios previdenciários. Entre as sugestões estão a taxação das grandes fortunas, a mudança na tabela do Imposto de Renda e a revisão de fundos públicos.

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O limite entre a política e economia

Rosana Hessel 

Marina Barbosa 

16/09/2020

 

 

O debate em torno da criação do Renda Brasil sempre esbarrou na questão do teto de gastos porque o Orçamento de 2021 não tem margem fiscal para novas despesas. Ao afirmar que o programa substituto ao Bolsa Família virou “palavra proibida” no governo e foi enterrado até 2022, o presidente Jair Bolsonaro deixou dúvidas sobre como reduzir o impacto negativo do fim do auxílio emergencial em 2021 e ainda sinalizar ao mercado de que continuará com a agenda de responsabilidade fiscal prometida em campanha.

A emenda constitucional que limita o aumento das despesas à inflação do ano anterior corre o risco de ruir em 2021, independentemente do Renda Brasil. O teto, segundo analistas, é a última âncora fiscal que restou. Se ela for flexibilizada ou descumprida, a confiança na capacidade do governo em controlar as despesas cai por terra, assim como as chances de manutenção dos juros em patamares baixos.

Como não há brechas no Orçamento de 2021 para o governo bancar o Renda Brasil como pretende Bolsonaro, os riscos de piora na desigualdade são grandes se o Bolsa Família não for ampliado. O Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) do próximo ano, enviado ao Congresso no fim de agosto, reserva R$ 34,8 bilhões para o atendimento de 15,2 milhões de famílias no Bolsa Família. Mas, de acordo com economistas consultados pelo Correio, o Renda Brasil custará bem mais que isso, podendo chegar a R$ 95 bilhões. E, hoje, o governo não tem margem para remanejar esses recursos do Orçamento de 2021.

A falta de um programa de renda básica mais robusto do que o Bolsa Família levanta dúvidas também sobre a retomada da economia no ano que vem. Levantamento da MB Associados aponta que, sem esse benefício, o Produto Interno Bruto (PIB) deste ano, cairia 7,1% neste ano em vez dos 4,8% previstos na estimativa revisada da consultoria. E, em 2021, com o fim desse auxílio no valor de R$ 300, o PIB deve encolher 2,4%, “queda que deverá ser atenuada pela recuperação cíclica da economia”. “O governo não tem tempo para discussão sobre isso em um segundo semestre tão congestionado politicamente. O presidente não tem condições políticas de mudar o abono salarial e outros benefícios para criar o Renda Brasil”, acrescentou.

Outras fontes

Na avaliação de Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV Social), ampliar o Bolsa Família é uma medida eficaz no combate à pobreza, que vai aumentar no ano que vem com o fim do auxílio emergencial. Neri estima que, pelo menos 13 milhões de pessoas que subiram de faixa de renda este ano devem retornar às faixas D e E no ano que vem. “O Bolsa Família é a solução fiscalmente mais eficiente de combate a pobreza”, recomendou. “Mas, no imaginário popular o salário mínimo é a grande política de combate à pobreza. Transferências de renda vinculadas ao mínimo são piores que o Bolsa Família, a começar pelo BPC”, emendou.

Nas últimas semanas, a equipe econômica buscou formas de remanejar outros recursos para financiar o Renda Brasil. O problema é que as propostas são inviáveis politicamente. Especialistas avaliam, contudo, que o governo poderia encontrar uma forma de bancar o Renda Brasil se decidisse taxar os mais ricos. “Taxação de dividendos, de heranças e de grandes fortunas, por exemplo, seria uma alternativa”, destaca José Antônio Moroni, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). Ele não vê, no entanto, disposição do governo.