Correio braziliense, n. 20934, 16/09/2020. Brasil, p. 6

 

Mourão: alguém no Inpe sabota o governo

Natalia Souza 

Edis Henrique Peres 

16/09/2020

 

 

O vice-presidente Hamilton Mourão enxerga alguma espécie de sabotagem, na divulgação de dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) sobre as queimadas nos biomas do país. Isso porque, segundo ele, “há alguém” no órgão que faz oposição ao governo e divulga os dados somente quando o dado é ruim.

“Quando o dado é negativo, o cara vai lá e divulga. Quando é positivo, não divulga, entendeu?”, acusou Mourão, ontem, acrescentando que não saberia dizer quem faz isso. “Não sou diretor do Inpe” reagiu, irritado.

Não é a primeira vez que o governo ataca o Inpe, contra o qual trava uma guerra de narrativas desde que o cientista Ricardo Galvão, então diretor da autarquia, acusou o presidente Jair Bolsonaro de adotar uma política de estímulo às queimadas na Amazônia, o que levou ao aumento dos focos de incêndio na região. Depois, o governo anunciou que investiria R$ 145 milhões num satélite americano que faria exatamente o mesmo trabalho realizado pelo instituto.

De acordo com o Inpe, a Amazônia teve 20.485 focos de queimadas na primeira quinzena de setembro que os 19.925 registros coletados nos 30 dias do mesmo mês, no ano passado.

15% comprometidos

Enquanto Mourão se preocupa com os dados do instituto, que considera coletados de forma a causar constrangimentos ao governo, a mesma autarquia observa que o Pantanal já teve cerca de 15% de sua extensão comprometida — foram contabilizados 5,3 mil focos de incêndio apenas neste mês. O pior setembro para o bioma, desde o início do monitoramento em 1998, foi o de 2007 quando houve 5.498 registros. O risco é este setembro se tornar o pior da história do bioma.

Ane Alencar, doutora em Recursos Florestais e Conservação, explica que o Pantanal está passando por um processo de seca extrema, vindo de uma seca forte do ano passado. “E, devido ao desmatamento, o regime de água das lagoas do bioma também tem mudado, o que gera uma maior suscetibilidade ao fogo”, explica a pesquisadora, para acrescentar.

“A reputação do país diante da agenda de sustentabilidade, que é uma agenda que começou a dominar o agronegócio, começa a ser afetada, como exportações e os acordos internacionais. O que é fundamental é não negar o problema, assumir o que está acontecendo e resolver a situação”, esclarece Ane.

Além do impacto na economia, também há o dano direto na vida da população. A estudante de pedagogia Flávia Assad convive com as chamas do Pantanal arder. “Você acorda e já tem uma neblina. A cidade já tem, naturalmente, um ar quente e nós chegamos a registrar esta semana 49°C com sensação térmica de 50°C. A gente não pode sair ou abrir a janela, que a fumaça entra e fica muito difícil respirar”, diz a estudante, que nasceu e cresceu no Pantanal.

De acordo com Cássio Bernardino, analista de Conservação do WWF-Brasil, cerca de 1,8 milhão de hectares já foram queimados, o que representa uma área de aproximadamente 85% de todo estado de Sergipe. Ele explica que não há números que definem o que isso significa de degradação da fauna e flora. “O Pantanal é um bioma que evoluiu com o fogo. Então, de certa forma, o fogo faz parte da vida do bioma. Só que, em sua concepção original, esse fogo acontecia em função de raios em um período chuvoso e o próprio ambiente controlava os incêndios. Agora, os incêndios acontecem em épocas de seca principalmente por conta de ações do homem. Estudos mostram que é preciso40 anos para que haja uma recuperação completa da vegetação”.

*Estagiários sob a supervisão de Fabio Grecchi