Título: Aborto e união gay na mira dos evangélicos
Autor: Correia, Karla
Fonte: Correio Braziliense, 07/05/2012, Brasil, p. 6
Deputados ligados à bancada religiosa articulam aumentar o alcance da proposta que permite ao Congresso anular decisões do Judiciário. Parlamentares querem a prerrogativa de impedir a aprovação de temas controversos, como o casamento homossexual
Ainda sob a ressaca da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que descriminalizou o aborto de anencéfalos, a bancada evangélica na Câmara dos Deputados se articula para aumentar o alcance de uma proposta de emenda à Constituição (PEC) aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa que autoriza o Congresso a sustar atos normativos do Judiciário "que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites da delegação legislativa". Os evangélicos veem na PEC a oportunidade de dar ao Legislativo a capacidade de anular decisões do Judiciário que, em sua interpretação, tenham invadido a prerrogativa de legislar. Além da autorização do aborto de fetos com malformação, por trás desse interesse estão na mira da bancada posicionamentos como o que reconheceu as uniões estáveis para casais do mesmo sexo.
"Não consigo entender por que o Judiciário tem que ter mais poder do que os demais Poderes. O Supremo não é infalível, ele pode errar e nós devemos estar atentos para corrigir esses erros", argumenta o presidente da Frente Parlamentar Evangélica, deputado João Campos (PSDB-GO). Na página que a frente mantém na internet, a contrariedade em relação ao aborto e à união de casais homossexuais são temas frequentes. O texto mais recente, publicado em 25 de abril, reproduz discurso de Campos em plenário que trata justamente da PEC.
A disposição dos evangélicos se alimenta também de um considerável desconforto do Legislativo em relação a decisões do Supremo que se adiantaram ao posicionamento do Congresso — caso, por exemplo, das regras de fidelidade partidária. Não à toa, a CCJ aprovou por unanimidade o relatório sobre a admissibilidade da PEC, situação relativamente rara na comissão. "O Judiciário tem legislado com frequência e isso não pode acontecer, é algo que fere o equilíbrio entre os Poderes", observa o autor da proposta, deputado Nazareno Fonteles (PT-PI).
Hoje, a Constituição dá ao Congresso o poder de sustar atos normativos do Executivo que são considerados fora de sua atribuição normativa. O texto da Carta, contudo, não prevê a mesma possibilidade em relação ao Judiciário. É esse o objetivo da PEC. Na avaliação de Fonteles, essa "lacuna" criaria uma situação de desigualdade na relação entre os Poderes.
"O que o Supremo tem feito é interpretar a Constituição contra a própria Constituição. Se o STF legisla, ele fere a cláusula pétrea que impõe a separação entre os Poderes e, sem dúvida, coloca em risco o Legislativo", acrescenta Fonteles.
O relator da matéria, o deputado Nelson Marchezan Júnior (PSDB-RS), discorda da possibilidade de o Congresso interferir em decisões da Justiça. "Existem posições inadequadas defendendo que o parlamento possa simplesmente suspender decisões judiciais. Isso não está escrito na PEC, não cabe na Constituição Federal", argumenta Marchezan.
Para o relator, qualquer alteração no texto feita nesse sentido poderá ser contestada judicialmente. "A emenda terá vícios graves se aprovada nesse formato", diz o deputado. "Não se pode tirar do Judiciário a capacidade de julgar."
Revanchismo O presidente da Academia Brasileira de Direito Constitucional, Flávio Pansieri, vê na iniciativa do Congresso um "movimento revanchista. "É o Legislativo se afirmando como fonte normativa do direito brasileiro em razão de decisões do Judiciário que se anteciparam ao Congresso", avalia Pensieri. "A democracia se constrói dessa forma. É natural que o Poder que se sente inferiorizado tenha uma reação", diz.
Apesar disso, a proposta que tramita no Congresso não é de todo incorreta, na visão do constitucionalista. Ele entende que a possibilidade de o Legislativo sustar decisões do Judiciário que impuserem novas restrições do direito ou criarem novas obrigações não afrontaria o princípio de separação dos Poderes. Seria o caso, por exemplo, da norma de fidelidade partidária, que criou obrigações de políticos com seus partidos ao abrir a possibilidade da perda do mandato a quem trocar de legenda, com poucas exceções.
"Agora, nas demais hipóteses, quando o Supremo age como um garantidor de direitos fundamentais, como no caso dos anencéfalos ou da união homoafetiva, não me parece viável o Legislativo interferir", observa Pansieri. "Não há espaço para isso no nosso Estado constitucional."
"O que o Supremo tem feito é interpretar a Constituição contra a própria Constituição. Se o STF legisla, ele fere a cláusula pétrea que impõe a separação entre os Poderes e, sem dúvida, coloca em risco o Legislativo" Nazareno Fonteles, deputado do PT-PI, autor da proposta
"Existem posições inadequadas defendendo que o parlamento possa simplesmente suspender decisões judiciais. Isso não está escrito na PEC, não cabe na Constituição. A emenda terá vícios graves se aprovada nesse formato" Nelson Marchezan Júnior, deputado do PSDB-RS, relator da PEC
"Quando o Supremo age como um garantidor de direitos fundamentais, como no caso dos anencéfalos ou da união homoafetiva, não me parece viável o Legislativo interferir. Não há espaço para isso no nosso Estado constitucional" Flávio Pansieri, presidente da Academia Brasileira de Direito Constitucional
Memória Julgamentos polêmicos Duas importantes decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no período de um ano contrariaram a Igreja Católica e entidades evangélicas. O aborto de fetos anencéfalos e a união civil entre homossexuais eram temas considerados tabus pelo Congresso, que, embora tenha projetos sobre esses assuntos, se omitiu ao não aprofundar o debate acerca dessas propostas.
Em maio do ano passado, a Suprema Corte autorizou por unanimidade a união homoafetiva, garantindo benefícios previdenciários e patrimoniais aos casais gays, que também passaram a ter direito a herança quando comprovada a união estável. O entendimento foi firmado pelo Supremo durante a análise de uma ação proposta pelo governo do Rio de Janeiro, que alegava que o não reconhecimento da união homoafetiva contrariava os princípios da igualdade, da liberdade e da dignidade da pessoa humana.
Em outro julgamento histórico, o STF decidiu, por oito votos a dois, no último 12 de abril, que as gestantes podem interromper a gravidez de anencéfalos sem que isso seja considerado crime. Os ministros fixaram, porém, a necessidade de laudos médicos que comprovem a malformação cerebral do feto. Até então, o aborto só era autorizado no país em duas situações: em caso de risco à vida da grávida e quando a mulher é vítima de estupro.