Correio braziliense, n. 20935, 17/09/2020. Política, p. 2

 

Uma alternativa ao Renda Brasil

Simone Kafruni

Rosana Hessel 

Ingrid Soares 

Luiz Calcagno

17/09/2020

 

 

Um dia depois de anunciar cartão vermelho para a equipe econômica e cancelar o Renda Brasil, o presidente Jair Bolsonaro deu sinal verde ao senador Márcio Bittar (MDB-AC), relator do Orçamento da União para 2021 no Congresso, para criar outro programa social. Bittar deixou o Palácio do Planalto dizendo estar autorizado por Bolsonaro a colocar no Orçamento a rubrica para o novo programa. Em seguida, o senador se reuniu com o ministro da Economia, Paulo Guedes, que foi pego de surpresa com a autorização do presidente.

Bittar não disse qual será a fonte de recurso para a proposta, que será fechada na próxima semana. “Não adianta agora a gente especular de onde que vai cortar, mas o presidente me deu sinal verde. A partir de agora, vou conversar com os líderes do governo no Senado e na Câmara. Mas a ideia é apresentar um relatório que tenha as PECs e também a criação desse programa na semana que vem”, afirmou. Além da relatoria geral do Orçamento do ano que vem, o senador é o relator da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do pacto federativo.

A ideia para o novo programa, explicou Bittar, é reunir incentivos para os beneficiados procurarem recolocação no mercado de trabalho. “Tem de ser voltado para a recuperação, com porta de saída e incentivo para as pessoas arrumarem um emprego, coisa que hoje não existe. Há excelentes ideias. Vamos juntar e ver o que é possível fazer”, destacou.

Após a reunião com Guedes, o senador garantiu que há clima favorável, tanto no Ministério da Economia quanto no Senado, para a criação do programa. Mas, novamente, evitou falar de onde sairá o dinheiro para bancar a assistência social. “O gasto, qualquer que seja, tem que constar no Orçamento. O que pode acontecer é você criar o programa, criar a rubrica, e depois esmiuçar mais na frente. Não precisa dizer quanto é o valor, de onde vai sair tudo. Você cria a caixinha. O resto é especulação”, assinalou. “Temos que atender a cerca de 10 milhões de brasileiros identificados como invisíveis na pandemia e hoje recebem o auxílio emergencial, que acaba em dezembro”, justificou.

O senador também fez questão de ressaltar que, daqui para frente, qualquer proposta de programa vai respeitar um rito hierárquico. “Onde não há hierarquia não há disciplina”, afirmou o parlamentar. O anúncio das propostas de obtenção de recursos para o Renda Brasil, feito pelo secretário de Fazenda da pasta, Waldery Rodrigues, foi o estopim para Bolsonaro cancelar o programa e levantar o cartão vermelho. Questionado se o secretário participou da reunião, Bittar desconversou. “Me reuni com o ministro.”

Cartão vermelho

No entender do cientista político Cristiano Noronha, sócio e vice-presidente da Arko Advice, o cartão vermelho foi levantado em razão de o plano anunciado por Waldery ter pego o presidente de surpresa. “Bolsonaro gosta de conduzir determinados temas com cautela. Veja o caso da reforma administrativa, ele demorou para submeter ao Congresso”, lembra. O especialista, contudo, não acredita que isso possa interferir na relação dele com o ministro Guedes. “É ruim porque a tensão tem como origem o ministério dele. Agora, até isso significar uma saída ou pedido de demissão, tem uma distância muito grande”, avalia. Segundo Noronha, Guedes entregou a reforma administrativa em dezembro do ano passado para Bolsonaro. “E não vazou nada. Ele continua o Posto Ipiranga e uma grande referência na área econômica e fiscal”, considera o analista.

Para o ministro das Comunicações, Fábio Faria, o cartão vermelho que o presidente Jair Bolsonaro apresentou para a equipe econômica foi resultado de um “conflito normal”. “O presidente teve uma reação contra um secretário que tinha dado entrevista sobre congelar por dois anos a Previdência. O presidente ficou chateado. É normal este tipo de conflito”, afirmou. Faria também descartou uma demissão ou fritura de Guedes. “Não que concordem em tudo, mas o presidente dá a autonomia principal ao ministro”, disse.

No Congresso, o conflito não foi considerado tão normal assim. O senador Otto Alencar (PSD/BA) destacou que Bolsonaro desautorizou Guedes em várias oportunidades. “Isso é um processo crônico de desgaste que o presidente impõe ao seus subordinados para retirar dele a responsabilidade do que ocorre no governo. Já demitiu nove ministros e 40 diretores de segundo escalão de alto relevo. Tantas demissões e conflitos mostram divergências internas e insegurança”, ressaltou. No entanto, o parlamentar não acredita que a tensão possa atrapalhar o andamento das PECs no Senado. “Não enfraquece nem altera muito. Nesses quase 20 meses de governo, a estabilidade foi dada pelo Legislativo. O que o governo manda, o Congresso se incumbe de melhorar. O pacto federativo vai ter emendas e modificações”, afirmou.

Com o cancelamento do Renda Brasil, parlamentares começaram a falar sobre o fortalecimento do Bolsa Família. “A desistência anunciada do Renda Brasil mostra duas coisas. Primeiro, que o Bolsa Família é um projeto que tem todo um fundamento científico, com dados estatísticos, está assentado no cadastro único, portanto, é muito difícil substituí-lo. Não é algo eleitoral. Depois, é mais uma contradição de Bolsonaro. Assim como foi na isenção de tributos sobre as igrejas, ele faz isso agora. Ele não está preocupado com equilíbrio fiscal, mas com a reeleição”, alfinetou o líder do PT na Câmara, Enio Verri (PR).

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Waldery no meio de relação conflituosa

Rosana Hessel 

Simone Kafruni 

17/09/2020

 

 

Apesar de o presidente Jair Bolsonaro não ter desistido de demitir o secretário especial de Fazenda, Waldery Rodrigues, o ministro da Economia, Paulo Guedes, está empenhado em mantê-lo na equipe, de acordo com fontes da pasta ouvidas pelo Correio. O clima no Ministério da Economia, na quarta-feira, não era dos melhores. O silêncio reinou absoluto, sem confirmação da permanência do secretário especial ou de sua saída. Até ontem à noite, Waldery Rodrigues participava da rotina do ministério. Esteve presente em uma reunião entre os secretários especiais do ministério e o chefe, Paulo Guedes.

Servidor do Instituto de Política Econômica Aplicada (Ipea), Waldery foi um dos primeiros economistas a trabalhar com Guedes no governo, ainda no período de transição, e é um dos homens de confiança do Posto Ipiranga de Bolsonaro. Entretanto, o secretário não é uma unanimidade e acumula desafetos na pasta. Ele é citado, inclusive, como pivô da saída de vários nomes do governo, como Mansueto Almeida e Caio Megale, que já está cumprindo expediente na corretora XP Investimentos.

A situação ficou muito ruim para Waldery após o secretário revelar, em entrevista ao portal G1, a proposta da equipe econômica para financiar o Renda Brasil por meio de congelamento de aposentadorias e pensões. Na terça-feira, Bolsonaro, visivelmente irritado, divulgou nas redes sociais um vídeo proibindo a equipe econômica de falar em Renda Brasil e afirmou que o autor da ideia merecia um “cartão vermelho”.

“Waldery não tem respaldo na equipe, mas é um fiel escudeiro de Paulo Guedes”, disse ao Correio uma fonte próxima à pasta. Segundo a mesma fonte, o ministro está buscando uma “saída honrosa” para ambos nesta nova crise. Resta saber se, até lá, o secretário não pedirá demissão após o constrangimento de proporções presidenciais. É um momento delicado para o ministro, que precisa se blindar em meio ao desgaste com Bolsonaro e à disputa com a ala desenvolvimentista, com influência cada vez maior no Planalto.

Não é a primeira vez que o presidente repreende em público Guedes e a equipe econômica. Com reações como a de terça-feira, o chefe do Executivo mostra que, mesmo sem entender de economia, não está disposto a adotar medidas impopulares. A resistência do presidente às propostas da área econômica aumentou particularmente após o presidente observar o aumento da popularidade em redutos petistas com o auxílio emergencial. No fim de agosto, além de exigir um valor do benefício acima dos R$ 247 propostos pela equipe econômica, criticou a proposta do ministro para criar o programa financiado com os recursos do abono salarial. Em um palanque, disse que não iria tirar de pobres para dar a paupérrimos.

Para o cientista político Cristiano Noronha, a partir de agora é uma questão pessoal entre o presidente e Waldery. “A permanência vai depender muito de como o secretário vai se colocar. Ele pode assumir o erro e se desculpar, garantindo que não fará mais divulgação pública antes de uma conversa”, avaliou. “Vale lembrar que Paulo Uebel (Desburocratização, Gestão e Governo Digital) saiu porque o governo não queria mandar a reforma administrativa”, lembrou.

Quando Bolsonaro quer uma coisa, não espera pela decisão dos seus ministros, segundo o especialista. Ele lembrou que o tributarista Marcos Cintra, ex-secretário da Receita Federal, órgão subordinado ao Ministério da Economia, foi demitido em setembro de 2019 após divulgar que pensava em criar um imposto sobre transações, semelhante à CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira), para desonerar a folha de pagamentos. Na época, integrantes do governo se apressaram em dizer que o presidente tinha pedido ao ministro para demiti-lo. Porém, o próprio Bolsonaro fez o desmentido, dizendo que determinou pessoalmente a queda do então secretário.

A relação conflituosa entre o presidente e a equipe de Guedes, naturalmente, piora o ambiente econômico no país. O presidente insiste em vetar as propostas de corte de despesas, dando um sinal bastante preocupante para o mercado, receoso com aumento dos riscos de flexibilização da última âncora fiscal: o teto de gastos. A desindexação de benefícios previdenciários pela inflação, também cogitada pela equipe econômica como forma de reduzir gastos futuros, foi proibida pelo presidente. Assim, diminuem as alternativas para que a bandeira da responsabilidade fiscal fique em pé no governo. Não à toa, há uma expectativa de que Guedes volte a cogitar aumento de imposto, ressuscitando a CPMF, uma fixação do ministro e do ex-secretário Marcos Cintra. A nova contribuição serviria não apenas para desoneração da folha, mas atenderia ao ímpeto populista do presidente.