Título: Maconha medicinal volta ao debate
Autor: Sensêve, Bruna
Fonte: Correio Braziliense, 21/02/2013, Saúde, p. 23

A revista científica New England Journal of Medicine questiona se é indicado usar a planta no tratamento de uma paciente de 68 anos com câncer de mama em metástase. A dúvida reacende o debate sobre os fins terapêuticos da polêmica erva

Marilyn, 68 anos, tem câncer de mama em metástase para os pulmões, o tórax e a coluna lombar. Submetida a sessões de quimioterapia, ela descreve ter pouca energia, apetite mínimo e dor insuportável no tórax e na coluna. Toma medicamentos para controlar o enjoo e os vômitos provocados pela radio ou quimioterapia, sem muito sucesso. Também são administradas doses de 1g de paracetamol a cada oito horas, sendo que, em algumas noites, recorre a 5mg ou 10mg de oxicodona para aliviar a dor. Essa substância é derivada do ópio e tem potência cerca de duas vezes superior à morfina. Em visita ao médico, ela o questiona sobre a possibilidade de usar maconha para aliviar a náusea, a dor e a fadiga. Qual seria a resposta mais adequada? A respeitada revista científica New England Journal of Medicine fez a pergunta à comunidade médica mundial em artigo publicado hoje.

Os argumentos são inúmeros — tanto favoráveis quanto contrários ao uso da maconha. Michael Bostwick, do Departamento de Psiquiatria e Psicologia da Clínica Mayo, em Minnesota, nos Estados Unidos, é categórico ao afirmar que indicaria a erva. “Concordo com a prescrição bem planejada de maconha medicinal para pacientes em situações semelhantes à de Marilyn”, declara. Segundo ele, uma porção crescente da literatura apoia a eficácia da substância, especialmente quando não há resposta aos tratamentos convencionais.

Entre as dezenas de substâncias existentes na maconha pura, duas têm um potencial medicinal promissor: o tetraidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD). Pesquisas teriam demonstrado que componentes da droga podem ser analgésicos, moduladores de apetite, antieméticos (contra náuseas e vômitos), antipsicóticos, além das possíveis ações contra neoplasias. “Eu acredito que a prescrição deva acontecer quando opções conservadoras falharam para pacientes completamente informados e tratados em contínua relação terapêutica. Como o impasse legal impede a tão necessária pesquisa científica, pacientes como Marilyn merecem o alívio potencial que a maconha medicinal oferece”, defende Bostwick. Para ele, a falha de todos os outros medicamentos pode levar à prescrição de narcóticos ainda mais agressivos, arriscando o agravamento dos sintomas gastrointestinais.

No outro extremo dessa questão, os professores Gary Reisfield e Robert DuPont, das escolas de medicina da Universidade da Flórida e da Universidade de Georgetown, respectivamente, afirmam que “a recomendação do fumo de maconha medicinal é sucumbir ao niilismo terapêutico”, isto é, reduzir a recomendação médica às próprias convicções pessoais. Eles argumentam que o fumo de maconha é um método não medicinal, não específico e potencialmente perigoso de recebimento da droga. “A planta cannabis contém centenas de compostos farmacológicos ativos, a maioria ainda não descrita. Cada quantidade de maconha é de origem incerta e de potencial variável, além de poder conter contaminantes desconhecidos”, justificam.

Para o caso específico de Marilyn, eles acreditam que é necessário considerar ainda os efeitos colaterais na memória e a promoção ou a exacerbação das disfunções cognitivas induzidas pela quimioterapia. As consequências para a doença pulmonar da paciente, sua vulnerabilidade imunológica e a progressão tumoral também são questionadas pelos especialistas. Eles ponderam, porém, que o uso oral da substância pode ser considerado menos nocivo. “Em contraste com o fumo, a administração oral pode garantir pureza química, doses precisas e um efeito, apesar de lento, mais duradouro.”

Combinações O preconceito e a falta de informação seriam os maiores inimigos do uso medicinal da planta, segundo o neurocientista Renato Malcher Lopes, professor do Departamento de Fisiologia da Universidade de Brasília (UnB). Ele conta que a maconha só deixou de ser usada como remédio por causa de questões que não dizem respeito às suas propriedades medicinais, mas por motivos políticos e interesses relacionados. “É importante entender que a maconha tem uma diversidade enorme de substâncias. Cada uma delas com propriedades farmacêuticas diferentes, que podem ser usadas isoladamente”, avalia. “Uma coisa interessante sobre a planta é a possibilidade de combinar proporções diferentes desses poderosos compostos, gerando uma interação de efeito único e de propriedade multissintomática.” O tratamento com a planta, segundo ele, deve ser indicado a todos os pacientes oncológicos e não só aos terminais, já que, segundo Lopes, há evidências científicas comprovando que seus componentes podem inibir o crescimento das células cancerosas.

O professor de psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Ronaldo Laranjeira nega esses efeitos. “Todas as associações médicas que conheço são absolutamente contrárias a esse tipo de uso da maconha terapêutica. A gente não pode dar uma fumaça com 400 substâncias para tratar uma pessoa”, analisa. Laranjeira estima que o uso das medicações com substâncias derivadas da maconha é restrito e não existe muitas indicações. Uma das preocupações do médico é que a venda da maconha medicinal possa servir como uma porta de entrada para o uso recreativo. “É o que aconteceu na Califórnia, muitos lugares que teoricamente vendem a maconha medicinal são para pessoas fumarem maconha com o carimbo da medicina”, critica.

Atualmente, existem dois canabinoides disponíveis e aprovados pela Food and Drug Administration, órgão de vigilância sanitária dos Estados Unidos, para o tratamento da náusea e do vômito induzidos pelo tratamento quimioterápico: o dronabinol e a nabilona. De acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o princípio ativo nabilona não tem autorização de venda no Brasil. Já o dronabinol, um composto derivado da cannabis, é considerado uma droga de efeito psicotrópico e pode ser vendido com receita especial.