Valor econômico, v. 21, n. 5091, 22/09/2020. Brasil, p. A6

 

Governo e MPF ainda discutem destino de dinheiro da leniência

Murillo Camarotto

22/09/2020

 

 

Cerca de R$ 870 milhões já ressarcidos por grandes empreiteiras estão parados em conta judicial

Governo e Ministério Público Federal (MPF) ainda não se entenderam sobre o destino dos recursos oriundos dos principais acordos de leniência firmados no âmbito da Lava-Jato. Até o momento, R$ 870 milhões já pagos por Odebrecht, Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez estão depositados em uma conta judicial, sem previsão de repasse para os beneficiários finais do dinheiro.

O montante represado tende a crescer enquanto durar a indefinição. Isso porque as três empreiteiras se comprometeram a devolver aos cofres públicos pouco mais de R$ 5,6 bilhões desviados em esquemas de corrupção. Esses recursos continuarão sendo depositados judicialmente até que a Controladoria-Geral da União (CGU) e o MPF concluam um encontro de contas que se arrasta há quase dois anos.

Somente para 2020, estão estimados pagamentos de mais R$ 816 milhões pelas empresas que já assinaram acordo. Os valores podem ser ainda maiores, considerando que um acordo de grande porte está em vias de ser fechado. A CGU, entretanto, não fornece informações referentes a negociações em andamento.

No auge da Lava-Jato, a força-tarefa de Curitiba correu para fazer os acordos de leniência com as grandes empreiteiras, com o objetivo de proteger os negócios e garantir as delações premiadas dos executivos. As tratativas, contudo, não tinham respaldo na legislação que disciplina o tema nem método para o cálculo dos valores de ressarcimento, o que contribuiu para a indefinição.

O MPF também tentou definir sozinho o destino adequado para os recursos, o que foi contestado pela CGU - órgão legalmente responsável pela condução dos acordos. Mais recentemente, já em meio à pandemia, a Procuradoria-Geral da República (PGR) chegou a anunciar o repasse de parte dos recursos oriundos da leniência para o combate à covid-19, o que foi contestado.

Na semana passada, o Tribunal de Contas da União (TCU) reclamou da falta de transparência nas informações sobre a arrecadação com os acordos. O ministro Raimundo Carreiro disse que a CGU e o Ministério da Economia descumpriram uma recomendação para que as previsões de arrecadação com leniência constassem do Projeto de Lei Orçamentária (PLOA) de 2021.

O primeiro acordo de leniência assinado pela CGU, já sob a vigência da Lei Anticorrupção, foi o da construtora UTC, em 2017. De lá para cá, 12 foram firmados, com promessas de ressarcimento que somam R$ 13,6 bilhões. Até agora, as empresas signatárias já desembolsaram R$ 3,8 bilhões, o que representa 28% do total.

A Petrobras - principal “vítima” do esquema desvendado pela Lava-Jato - já recebeu R$ 2,2 bilhões dos acordos assinados com a CGU. O segundo colocado dessa lista é justamente a conta judicial, para onde foram os R$ 870 milhões pagos pelas três empreiteiras. Em seguida aparece a União, que fez jus a R$ 730 milhões. A Caixa Econômica Federal recebeu R$ 35 milhões dos ressarcimentos já contabilizados.

Envolvidas em algumas ilegalidades, a BR Distribuidora e a Transpetro receberam R$ 8,1 milhões e R$ 330 mil, respectivamente. Há, também, credores bem menores - alguns inusitados. São os casos, por exemplo, da Agência de Promoção de Exportações (Apex) e do Conselho Federal de Engenharia (Confea). A Apex recebeu R$ 1,8 milhão da agência de publicidade MullenLowe, mas os motivos do repasse não estão informados na versão do acordo disponibilizada pela CGU. O mesmo vale para o Confea, que recebeu R$ 3,8 mil.

A definição dos valores dos acordos colocou CGU e TCU em rota de colisão desde o início das discussões. A área técnica do tribunal sempre reivindicou a prerrogativa de ter a palavra final sobre essa conta e queria ser ouvida antes dos acordos serem assinados, o que não aconteceu. O TCU chegou a ameaçar declarar inidôneas empresas que já tinham acordo com a CGU e o caso foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF), que proibiu tal punição.

Recentemente, um termo de cooperação entre todos os órgãos envolvidos foi assinado, com mediação do STF. Ocorre que o MPF ficou de fora, o que mantém uma aura de insegurança jurídica sobre a leniência.

Nessa seara, o TCU também passou a mirar os acordos fechados pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Na semana passada, o ministro-substituto Augusto Shermann acolheu uma representação do Ministério Público de Contas, que suspeita do valor das multas aplicadas pelo Cade a empresas como Odebrecht, OAS, Carioca Engenharia e Andrade Gutierrez.

No documento, o procurador Júlio Marcelo de Oliveira sustenta que, ao assinar acordos que encerram as investigações contra as empresas, o Cade estaria adotando valores de multa muito inferiores aos ganhos com os esquemas de corrupção. “Não faz sentido que a contribuição pecuniária tenha valor inferior à punição mínima que seria imposta em caso de julgamento da empresa”, alega o procurador. O Cade tem até o dia 26 para prestar as informações solicitadas.