O globo, n. 31796, 26/08/2020. Mundo, p. 30

 

Impasse continental

Ana Rosa Alves

26/08/2020

 

 

OEA nega novo mandato a brasileiro que lidera comissão de direitos humanos e causa crise

 O secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), Luís Almagro, não renovou o mandato do secretário-executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), o brasileiro Paulo Abrão, que presidiu a Comissão de Anistia durante os governos de Lula e Dilma Rousseff. Em uma nota de repúdio divulgada em seu site, a CIDH classifica a decisão como um “sério ataque contra sua independência e autonomia”.

Apesar de fazer parte da OEA, a CIDH é um órgão autônomo que exerce papel central no monitoramento e no combate a violações dos direitos humanos na região desde que foi fundada, há 61 anos. A decisão de Almagro abre um impasse na organização, já polarizada entre os governos de esquerda e direita do continente.

Em janei rodes teano, em decisão unânime, os sete comissários da CID H optaram por renovar o mandato de Abrão, no cargo desde agosto de 2016, por mais quatro anos. Almagro, no entanto, anunciou à comissão no dia 15, data do vencimento do contrato do brasileiro, que o mandato não seria imediatamente prorrogado. De acordo com anotada CIDH, no entanto, não houve quaisquer questionamentos formais em relaçãoàre novaçãono soito meses anterioresà decisão do secretário-geral.

POLARIZAÇÃO POLÍTICA

“A CIDH rejeita qualquer tipo de interferência no exercício dese u mandato e,emp articular, em seu poder de eleger, renovar e demitir seus funcionáriosde confiança ”, diz anotada comissão. “Na prática, essa decisão se traduz em uma recusa de prorrogação do contrato de trabalho. A comissão anuncia à comunidade internacional que esta decisão unilateral do secretário-geral constitui um flagrante desrespeito à sua independência e autonomia.”

Em comunicado, Almagro disse que o mandato de Abrão não foi renovado em razão de “dezenas de denúncias” administrativas contra ele, que constariam de um relatório confidencial elaborado pela ombudsperson da OEA, Neida Pérez. O secretário-geral ainda acusou a comissão de não ter tomado a iniciativa de investigar as acusações.

“É totalmente antiético e repreensível tentar criar confusão entre oque constitui a responsabilidade funcional individual e a responsabilização de um ou mais funcionários e o que constitui a autonomia da CIDH”, disse Almagro.

Antes de assumira liderança da CID H, Abrão foi secretário nacional de Justiça entre 2011 e 2014. Entre 2007 e 2016, presidiu a Comissão da Anistia, responsável pelas políticas de reparação e memória às vítimas da ditadura militar brasileira.

O impasse ocorre no contexto de uma disputa em relaçãoà amplitude do trabalho da CIDH. Em abril do ano passado, Brasil, Argentina, Chile, Colômbia e Paraguai elaboraram uma carta demandando que a comissão “respeitasse a autonomia dos Estados”. Isso foi visto como uma tentativa de limitar o trabalho do órgão. Após achegada do peronista Alberto Fernández ao poder, no ano passado, Buenos Aires se distanciou desse bloco. O Equador e o governo interino da Bolívia, no entanto, se juntaram ao grupo, mesmo que sem assinar acarta.

Almagro, por suavez,fo ire elei top aramais cinco anosà frente da OEA em março, com mais de dois terços dos votos. O uruguaio tem o apoio dos países com governos de direita, como Estados Unidos, Brasil, Colômbia e Bolívia.

Entre as ações recentes da CIDH destacam-se investigações sobre violações de direitos humanos em países como Chile, Equador e Bolívia. Na pandemia do novo coronavírus, a comissão criou uma “sala de coordenação e resposta” para receber denúncias de violações. Nesta semana, e mentre vistaà revista Época, o relator para a Liberdade de Expressão da comissão, Edison Lanza, defendeu que o Brasil receba um amissão da organização  para monitorara situação da liberdade de expressão no país. O comentário veio após o presidente Jair Bolsonaro afirmar que estava com vontade de dar “porrada” em um repórter do GLOBO que o questionou sobre os depósitos feitos por Fabrício Queiroz na conta deMichelle Bolsonaro.

Ao informar que não prorrogaria o mandato de Abrão até que as denúncias contra ele fossem investigadas, Almagro baseou-se ainda em um segundo relatório, jurídico, segundo o qual detém a prerrogativa de nomeara lide rançada comissão. A CID H contestou também esse ponto, afirmando que ele iria na contramão da prática e da opinião da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que estabeleceu que o órgão “tem plena autonomia e independência no exercício de seu mandato”.

De teor sigiloso, o documento elaborado pela ombudsperson conteria cer cade 60 denúncias contra Abrão, incluindo“abuso trabalhista” e“manipulação de contratos ”, de acordo coma agência AFP. Fontes ouvidas pelo GLOBO, no entanto, afirmam que não há um motivo claro pelo qual o documento,que deveria ter sido entregue no primeiro trimestre, só tenha sido apresentado faltando cinco dias para o fim do contrato de Abrão.

PROTESTOS E SILÊNCIO

O CIDH apontou em seu comunicado que a ombudsperson não tem autonomia para realizar uma investigação sobre as denúncias e também não solicitou que isso acontecesse. Usá-las, portanto, iria contra a presunção de inocência do secretário-executivo. A CID H alertou também que até hoje não recebeu a totalidade dos recursos aprovados em 2017 pela Assembleia Geral da OE A. Segundo anota, isto busca enfraquecera comissão quando se debate seu orçamento para o ano que vem.

A decisão de não renovar o mandato baseando-se em um relatório confidencial foi criticada por José Miguel Vivanco, diretor-executivo da Human Rights Watch para a América Latina, que a classificou como um “sério retrocesso que vai na contramão de 20 anos de prática” e afeta a autonomia e a credibilidade da CIDH. A Associação Brasileira de Relações Internacionais divulgou uma nota de protesto.

Procurado para comentar o impasse, o Itamaraty não se pronunciou até o fechamento desta edição.

“A comissão anuncia à comunidade internacional que esta decisão unilateral do secretário-geral constitui um flagrante desrespeito a sua independência e autonomia”

CIDH, em nota de protesto contra a decisão, justificada por relatório sigiloso que conteria denúncias funcionais contra Paulo Abrão