O globo, n. 31797, 27/08/2020. Sociedade, p. 18

 

80 dias em platô

Rafael Garcia

27/08/2020

 

 

Fase com média de mil mortes por dia já é a mais longa da pandemia

 O Brasil completou ontem seis meses de epidemia da Covid-19 em um cenário de persistência da doença. A partir da data da primeira morte notificada no país, em 80 dias a média de mortes diárias subiu de uma para mil. Agora, já se passaram outros 80 dias em que estamos nesse platô, no qual cerca de mil óbitos são registrados diariamente, considerada uma oscilação de 10%.

A estagnação aparente, porém, esconde um cenário dinâmico. Na semana em que o Brasil entrou no platô das mil mortes diárias, um grupo de apenas 20 dos mais de 5.500 municípios brasileiros concentrava 25% das mortes. Na atual semana, os 20 municípios com mais óbitos concentram apenas 16% deles. Essa comparação é uma medida de como a epidemia está mais pulverizada agora.

Da lista das 20 cidades com mais mortes na semana em que o Brasil entrou no platô, só cinco permanecem entre aquelas com mais óbitos semanalmente: Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Guarulhos e Manaus.

Saíram da lista capitais como Belém e Recife, e alguns municípios do interior do Nordeste. Entraram na lista da última semana Campo Grande e Porto Alegre — onde a epidemia levou mais tempo para decolar —, e cidades do interior paulista, como Ribeirão Preto e São José do Rio Preto. A cidade do Rio sofreu queda acentuada, mas viu ela se reverter nas duas últimas semanas.

Por trás dos 80 dias de platô no número de mortes, portanto, há tanto interiorização quanto deslocamento do eixo Sudeste-Nordeste para o Sul-Centro Oeste.

O Norte oscila. Manaus, que passou por um traumático colapso do sistema de saúde em maio, saiu da lista das 20 mais afetadas, mas depois voltou.

A pulverização afeta a percepção da pandemia, entre outros motivos, porque 14 das 20 cidades mais afetadas até agora já estão numa tendência sustentada de queda, com pico de mortes ocorrido há mais de mês.

Apesar da mudança geográfica, cientistas dizem que o motivo da persistência da epidemia em nível alto mudou pouco.

— O que observamos é o resultado dos nossos problemas na origem da resposta, ou melhor, na falta de uma resposta coordenada do Ministério da Saúde, com base na estrutura do SUS —diz Maria Amélia Veras, professora de epidemiologia da Faculdade de Medicina da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.

— Se tivéssemos como pilar a estratégia de saúde da família, iniciado testagem de forma racional, em um programa de rastreamento, poderíamos ter contido a epidemia de modo a evitar muitas mortes, impedido que esta chegasse com força ao interior —afirma.

Um dos motivos apontados para explicar a falha em frear a interiorização da epidemia também foi a sincronização do tempo de fechamento da economia em áreas com perfil distinto.

— Nos estados, as cidades pequenas tiveram que seguir a regra que era dada pelo gestor estadual, e muitas cidades entraram com isolamento, fechando seu comércio e sua indústria muito antes de os casos de Covid-19 chegarem até elas — explica a infectologista Raquel Stucchi, da Unicamp.

Segundo a médica, este fechamento das cidades menores por um período muito prolongado, com cenários muito diferentes da pandemia em cada local, se mostrou contraproducente.

— Neste momento, as cidades não se sustentam mais sem que suas economias comecem a reagir novamente — explica a médica, ponderando que as medidas de distanciamento social são o recomendado para locais onde a epidemia cresce.

TAXA DE INFECÇÃO OSCILA

Uma das variáveis usadas para medir o ritmo de disseminação da doença é o número básico de reprodução (R0), que indica quantas pessoas cada vítima infectada da Covid-19 reinfecta.

Após cair na semana passada, o R0 do Brasil oscilou levemente para cima e voltou a 1, segundo relatório semanal do Imperial College de Londres ontem. O dado indica leve flutuação em relação à semana anterior, quando a taxa estava em 0,98, patamar mais baixo desde abril, indicando leve desaceleração do contágio.

O número de casos não letais da doença no país indica queda maior do que o número de mortes. Apesar de reagir à tendência mais recente de contágio, é considerado menos confiável do que o número de mortes pela doença, por ser mais vulnerável à subnotificação.

Um dos fatores apontados por especialistas para a elevação no número de mortes registradas no Brasil é a mudança de critérios para inclusão de óbitos nas estatísticas. Mortes diagnosticadas por critérios clínicos, sem exame laboratorial, também passaram a ser incluídas agora, e alguns estados estão revendo mortes ocorridas até antes de julho, diz Raquel Stuchhi.

Tanto ela quanto Maria Amélia, da Santa Casa, dizem crer que a persistência do platô de mortes em nível alto não se explica sem as falhas nas políticas públicas para distanciamento social.

—Fechamos mal, com nível deadesãoentremedianoebaixo, em momentos equivocados, em algumas cidades antes da hora, provocando um esgotamento que, associado a pressões econômicas e a questões da agenda eleitoral dos prefeitos, resulta no que estamos vendo agora —afirma.