O globo, n. 31798, 28/08/2020. Segundo caderno, p. 1

 

O sacrifício de uma nação

28/08/2020

 

 

ARTISTA E ATIVISTA CHINES Ai Weiwei revela bastidores do lockdown draconiano de Wuhan no filme “Coronationº e se diz vítima de conspiração econômica a favor de Pequim

 Em janeiro, a cidade chinesa de Wuhan se tornou a primeira no mundo a passar por um bloqueio para combater a pandemia do coronavírus. De muitas maneiras, esse período crucial permanece um mistério, com poucas imagens escapando das garras dos censores.

Um novo filme do artista e ativista chinês Ai Weiwei ajuda a preencher um pouco dessa história. Embora esteja morando na Europa, Ai dirigiu remotamente dezenas de voluntários em toda a China para criar “Coronation”, um retrato do bloqueio draconiano de Wuhan —e de um país capaz de mobilizar enormes recursos, embora com um grande custo humano. O filme está disponível no Vimeo On Demand

— O público tem de compreender que se trata da China —diz Ai em entrevista por telefone, de Portugal. — Sim, é sobre o bloqueio do coronavírus, mas tenta também refletir sobre o que o povo chinês comum passou.

Apesar dos primeiros passos em falso, a China se saiu melhor do que muitos países para controlar a epidemia, com cerca de 4.700 mortes em comparação com mais de 180 mil nos EUA. O Partido Comunista não mede esforços para reprimir demonstrações de tristeza e raiva.

O filme reflete essa história de modo cronológico: começa em 23 de janeiro com um casal dirigindo em uma noite de neve para voltar para casa num subúrbio de Wuhan, e termina em 8 de abril com pessoas queimando papelmoeda — um ritual pelos mortos —numa esquina.

CENAS RARAS

Nomeio estão cenas e históriasnotáveis por seu raro acesso à máquina do Estado chinês. Isso inclui imagens de perto de um hospital sendo construído em questão de dias e uma visão interna de uma Unidade de Terapia Intensiva, cenas de equipes médicas sendo recompensadas com a adesão ao Partido Comunista e de trabalhadores num crematório amassando sacos de cinzas humanas para fazê-las caber em urnas.

A impressão geral, especialmente na primeira meia hora do filme, é de incrível eficiência. As máquinas da UTI trabalham a todo vapor. Os novos membros do partido prestam juramento com os punhos direitos erguidos, e os trabalhadores do crematório trabalham tanto que reclamam que suas mãos doem.

Conforme o filme avança, os custos humanos se tornam mais aparentes. Um voluntário cujo trabalho foi concluído não tem permissão para sair da zona de quarentena, então dorme em seu carro num estacionamento. Os enlutados lamentam inconsolavelmente no crematório, e um homem luta para ter permissão de pegara ur nado pai sema presença de funcionários do governo—algo que autoridades não permitem porque temem que o luto se transforme em raiva do Estado por ter permitido que o vírus se espalhasse.

Embora mais conhecido por suas instalações de arte, Ai sempre investigou em filmes questões delicadas da China. Ele fez um documentário sobre um homem que assassinou seis policiais em Xangai e outro sobre por que tantas escolas desabaram no terremoto de Wenchuan em 2008. —Eu tinha uma equipe que podia começar rapidamente—diz Ai sobre fazer “Coronation”. — Eles não precisaram perguntar o que eu queria. Além de voluntários e

equipes pagas, Ai conta que foi auxiliado por suap arce ira,Wa ng Fen, cujos irmãos moram em Wuhan. “Ela teve um envolvimento profundamente emocional”, lembra.

Acena mais difícil de filmar foi dentro da UTI, revela o artista, apesar de afirmar que não pode detalhar como ela foi feita. Ai diz que boa parte do filme foi realizado com câmeras de vídeo portáteis do tamanho de um smartphone.

500 HORAS DE FILMAGEM

Ai conta ainda que acumulou quase 500 horas de filmagens, reduzidas para cerca de duas no documentário. O artista diz que esperava exibir “Coronation” primeiro em um festival de cinema. Segundo ele, os de Nova York, Toronto e Veneza manifestaram interesse. Depois, porém, recusaram o filme. Ai afirma ainda que a Amazon e a Netflix também rejeitaram o longa. Para ele, muitos festivais e empresas querem fazer negócios na China e, por isso, evitam tópicos que podem irritar Pequim, algo que outros diretores chineses dizem ser comum.

O Festival de Veneza não quis comentar, enquanto o de Toronto e a Amazon não retornaram ligações ou e-mails. Outros negaram que a política tenha desempenhado um papel. Uma porta-voz da Netflix disse que o serviço estava trabalhando em seu próprio documentário sobre o vírus, enquanto um assessor de imprensa do Festival de Nova York afirmou em e-mail que eles “querem enfatizar que as pressões políticas não têm e nunca tiveram um papel importante na seleção”.

Ai diz que o filme mostra como o sucesso tecnocrático da China representa um desafio para sociedades abertas. Seu tipo de capitalismo de estado proporcionou décadas de rápido crescimento econômico e ajudou a tirar dezenas de milhões da pobreza absoluta:

— Porém não se trata apenas da eficiência com que você toma decisões, mas do que você entrega à sociedade humana. Para isso, a China não oferece respostas.