O Estado de São Paulo, n.46284, 07/07/2020. Política, p.A4

 

Congresso é autor de 9 em cada 10 medidas anticovid

Camila Turtelli

Daniel Weterman

07/07/2020

 

 

Poderes. Legislativo responde por 92% dos projetos relacionados à crise do coronavírus que viraram lei até agora; Executivo só conseguiu aprovar uma proposta de sua iniciativa

Legislativo. Das leis direcionadas ao combate à pandemia que foram aprovadas, sete vieram da Câmara e 5 do Senado

No dia 26 de março, já em plena pandemia, a Câmara dos Deputados aprovou o pagamento do auxílio emergencial a trabalhadores informais. Cinco dias depois, o Senado liberava a telemedicina para o atendimento de pacientes como mais uma medida de enfrentamento do novo coronavírus. Em comum, as duas iniciativas partiram do Legislativo, como 92% dos projetos relacionados à crise da covid-19 transformados em lei até agora.

O governo conseguiu aprovar no Congresso apenas um projeto de sua iniciativa – o que autorizou medidas como isolamento e dispensa de licitação em compras públicas enquanto durara pandemia. A estratégia do Executivo tem sido ade enviar medidas provisórias (MPS), que entram em vigor assim que publicadas, mas precisam de aprovação do Legislativo para virar lei.

Ao todo, foram 49 MPS, mas apenas três tiveram o aval dos parlamentares – a que permitiu a redução de salários e jornada de trabalhadores do setor privado; a que cortou pela metade a contribuição das empresas para manutenção do Sistema Se a que ampliou o prazo para as companhias realizarem assembleias ordinárias. As demais, caso não aprovadas, perderão a validade antes do fim da crise.

Segundo o levantamento, feito por técnicos da Câmara, quase metade (41%) destas MPS editadas por Bolsonaro teve motivação econômica, como a liberação de crédito extra para ministérios ou alívio fiscal a algum setor. No entanto, as medidas de maior impacto partiram de iniciativas do Congresso.

Além do auxílio emergencial, é oca soda ajuda financeira de R$ 60 bilhões para Estados e municípios. O socorro foi aprovado após um vai eve mentre Câmara e Senado e sancionada no último minuto, com vetos, por Bolsonaro. "Na pandemia, ficou mais evidente, mas já não era diferente antes. Um Congresso formulador e ágil diante de um governo confuso que só 'pega no tranco'", disse o relator do projeto na Câmara, deputado Pedro Paulo (DEM-RJ).

Como mostrou o Estadão, apenas 21% dos projetos votados em 2019 tiveram como autor o Poder Executivo. Em tese, os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado e os líderes partidários têm autonomia para escolher o que é ou não votado. Na prática, porém, o Poder Executivo costuma impor sua agenda.

Os números mostram que Bolsonaro tem minimizado a pandemia não apenas no discurso. Na mesma semana em que os deputados criavam o auxílio a informais, o presidente tratou a doença como "histeria", acusou a imprensa de espalhar "a sensação de pavor" e chamou a doença de "gripezinha".

O presidente tem, inclusive, usado seu poder de veto contra projetos aprovados pelo Congresso. Na última semana, usou a caneta para desobrigar o uso de máscara em órgãos e entidades públicas e em estabelecimentos comerciais, industriais, templos religiosos, instituições de ensino e demais locais fechados em que haja reunião de pessoas.

Por outro lado, Bolsonaro se esforçou para aprovar projeto do Executivo sem qualquer relação com a doença, como o que aumenta o prazo de validade da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e amplia o número de infrações que precisam ser cometidas para que o motorista perca o documento.

Relevância. O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), vê no alto índice de projetos aprovados com origem no Legislativo um sinal de que deputados e senadores estão "ouvindo a sociedade".

"O levantamento mostra o papel importante e relevante que o parlamento tem", afirmou.

Para o deputado Kim Kataguiri (DEM-SP), os dados acabam com a "falsa narrativa do presidente Jair Bolsonaro de que o Congresso não está deixando ele governar". "Fica claro que a principais medidas contra a pandemia foram tomadas pelo Parlamento. Bolsonaro não governa porque não quer", disse o parlamentar.

'Competências'. O Planalto informou, em nota, desconhecer o levantamento feito pela Câmara, e citou outras medidas, como portarias, decretos e instruções normativas, que regulamentam ou complementam leis aprovadas no Parlamento. "No estado democrático de direito, cabe ao Executivo executar as leis e cabe ao Legislativo elaborar as leis. Além disso, em um sistema de freios e contrapesos, o princípio da separação dos poderes busca limitar as competências, impedindo que um Poder se sobreponha a outro", diz.

PARA LEMBRAR

Executivo não domina pauta

O Estadão mostrou em janeiro que, dos projetos votados pela Câmara no primeiro ano do governo Jair Bolsonaro, apenas 21% tiveram como autor o Executivo – a menor parcela desde o governo Lula, em 2003. No ano inaugural do primeiro mandato de Lula, 68% dos projetos votados eram de autoria do Executivo. No segundo ano, a taxa foi de 86%. O predomínio do governo se manteve no primeiro ano de Dilma Rousseff: 59% dos projetos votados eram de autoria do Executivo. No segundo mandato, porém, a petista perdeu o comando da Câmara: apenas 26% das propostas votadas vieram do Planalto. Michel Temer formou ampla base na Casa, mas em seu primeiro ano o Executivo não dominou a pauta de votações: apenas 34% das propostas que passaram pelo plenário vieram do Planalto.