Correio braziliense, n. 20945, 27/09/2020. Cidades, p. 20 e 21

 

Sustento, sobrevivência e saúde comprometidos

Adriana Bernardes

Jéssica Eufrásio 

27/09/2020

 

 

A coleta e destinação dos resíduos sólidos no Distrito Federal têm um longo caminho até atingir as metas do Plano Distrital de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos (PDGirs), lançado em 2018. O documento estabelece a reciclagem de 28% dos resíduos domiciliares urbanos até 2037. No entanto, das mais de 750 mil toneladas de lixo coletadas por ano, somente 35 mil toneladas (4,6%) são recicladas. Além dos prejuízos para o meio ambiente e do comprometimento do único aterro sanitário da capital, a vida e a renda de cerca de 2 mil catadores são afetadas de modo brutal.

Na segunda reportagem da série Lixo na pandemia, o Correio detalha a rotina dos trabalhadores que sustentam famílias com a reciclagem e como o novo coronavírus ameaça a sobrevivência deles. Representantes de cooperativas com quem a reportagem conversou contam que o lucro nos galpões de separação de recicláveis depende da quantidade e da qualidade do material. E, nesse sentido, ainda é preciso avançar muito.

Das 33 regiões administrativas do DF, 15 têm serviço de coleta seletiva integral (45,4%) e oito são contempladas, parcialmente (24,2%). Isso significa que, dos 3 milhões de habitantes, pouco mais da metade (52%) é atendida pelo serviço. Onde o Poder público não chega, mesmo que a família ou condomínio façam a separação, recicláveis e orgânicos são recolhidos pelo mesmo caminhão e têm um único destino: o Aterro Sanitário de Brasília, em Samambaia.

Relatos revelam que, mesmo nos galpões de reciclagem, animais mortos, resíduos hospitalares e itens de higiene pessoal — considerados rejeitos — chegam às esteiras de triagem, porque nem todos separam corretamente o lixo. Nessas condições, os trabalhadores conseguem tirar entre R$ 700 e R$ 800 por mês, menos do que o salário mínimo (R$ 1.045). E, com a pandemia da covid-19, a desigualdade social e a exclusão de catadores do DF agravaram-se.

Sem garantias

Entre uma das medidas para conter a disseminação do novo coronavírus, o Governo do Distrito Federal (GDF) suspendeu diversas atividades na capital, inclusive o serviço de coleta seletiva, e fechou os galpões de reciclagem em março. Funcionários de cooperativas e catadores autônomos passaram a depender dos auxílios emergenciais ou ações filantrópicas para sobreviver. Após o retorno parcial da coleta seletiva, alguns continuam impedidos de trabalhar, por serem do grupo de risco, uma vez que podem ser acometidos com a forma mais grave da covid-19.

Antes de trabalhar no galpão de triagem, José Maria dos Santos, 64 anos, e a mulher, Maria do Socorro Lemos, 60, passavam os dias sobre a montanha de resíduos do maior lixão a céu aberto da América Latina, o Lixão da Estrutural — desativado em 20 janeiro de 2018, oito anos após uma decisão judicial determinar o fechamento do local. “Está difícil imaginar como serão os próximos meses. Já ganhávamos pouco e, com esse afastamento, ficou pior ainda”, lamenta José Maria. “Ficamos doentes dentro de casa. Você não pode sair, não tem condição de comer o que você quer. É difícil”, protesta o homem.

Com a interrupção das atividades, o casal teve de recorrer ao auxílio emergencial do governo federal. Cada um recebeu R$ 600, uma queda de, aproximadamente, 25% na renda. “Nunca tiramos mais do que um salário mínimo cada um. Mas, se cair o valor do auxílio (para R$ 300), não sabemos como vai ser”, admite José Maria. Com diminuição no orçamento familiar, isolamento social e sem trabalho, Maria do Socorro considera a situação triste. “Moramos em um lugar pequeno. Fico impaciente, estressada, e minha pressão aumentou. Não tem mais o que ver (na televisão), não entendo muito de celular. Fico pensando no que vou fazer da minha vida. Eu queria trabalhar, não queria auxílio. Mas, se não (nos) deixam (trabalhar), temos de ter ajuda de alguma forma”, afirma a trabalhadora.

Exclusão

A vulnerabilidade dos catadores é maior do que se pode imaginar. Roberto Carlos Batista, promotor de Defesa do Meio Ambiente, do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), diz que, apesar de a profissão ser reconhecida, a categoria não foi incluída na Previdência. “Em caso de acidentes ou de doença, não recebem auxílio, não têm direito à aposentadoria por tempo de trabalho, nada. Isso é um absurdo”, avalia (leia Ponto a ponto). Segundo Roberto Carlos, o então senador Rodrigo Rollemberg (PSB) propôs um projeto de lei para corrigir essa distorção, mas a matéria foi arquivada. A deputada Erika Kokay (PT-DF) retomou a ideia, mas descobriu que seria necessária uma proposta de emenda à constituição (PEC), pois a inclusão implica em aumento de gastos.

Na Cooperativa Construir, na Estrutural, dos 57 trabalhadores, 14 estão afastados por serem do grupo de risco. Eles vivem sem a garantia de receber um amparo financeiro fixo. “A renda ficou péssima. Além de termos sido suspensos, não tínhamos outra fonte de recursos para sobreviver. Alguns parceiros ajudaram, arrumaram cestas para a gente”, conta a presidente, Zilda Fernandes de Souza, 52. Para piorar, o galpão, que deveria abrigar duas cooperativas, passou a contar com três. “O lucro está bem menor. Não tem nem comparação”, completa.

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Responsabilidade de todos 

27/09/2020

 

 

Educadora e triadora de recicláveis, Edvania Alves da Cruz , 39 anos, faz parte de um grupo de profissionais que bate de porta em porta conscientizando moradores e comerciantes sobre como cada um pode separar o lixo de forma responsável, oferecendo menos riscos para os trabalhadores da coleta e para o meio ambiente.

Integrante de uma cooperativa de São Sebastião, Edvania atua como mobilizadora três vezes por semana. O contato com as pessoas está mais limitado, por causa da pandemia. “Antes, batíamos palma e conversávamos com moradores cara a cara. Éramos mais aceitos do que rejeitados. Agora, estamos mais na panfletagem nas caixinhas de correio, mantendo distância de segurança e conversando só em caso de dúvida”, explica.

Na família de Edivania, a crise do novo coronavírus afetou a rotina de formas distintas. “A vida ficou bem difícil de março a julho. Só meu marido conseguiu os R$ 600 de auxílio emergencial. A gente saía para juntar latinha, porque temos um bebê de 2 anos que toma leite e, às vezes, não tinha dinheiro para comprar. Tínhamos de fazer alguma coisa”, ressalta.

Por outro lado, o trabalho de conscientização da comunidade começou a se refletir na quantidade e na qualidade dos recicláveis que chegam ao galpão de triagem. “A mobilização associada ao fato de haver mais pessoas em casa levou a uma separação de resíduos mais eficiente em São Sebastião. Estão chegando menos rejeitos. Antes, o volume de recicláveis era menor. Fiquei até impressionada com meu último pagamento e muito emocionada. Nunca tinha recebido aquele valor na cooperativa”, comemora.

Prestação de contas

Professora do curso de serviço social do Centro Universitário Iesb e coordenadora do Projeto Fênix, que atua junto a catadores de lixo do Distrito Federal, Erci Ribeiro explica que o descarte inadequado anula o ciclo de lixo. “É preciso contribuição da população para entender como o descarte deve ocorrer”, reforça.

Erci acrescenta que a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) parte da premissa da descentralização do poder. “As grandes empresas são responsabilizadas pelas embalagens e produtos que lançam no mercado. Elas precisam prestar contas disso. Mas, a sociedade também precisa entender que é responsável pelo lixo doméstico que produz”, alerta a professora.

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Divulgação é fundamental

27/09/2020

 

 

Apesar de a coleta seletiva ter sido retomada de forma gradual, o promotor Roberto Carlos Batista, da Promotoria de Defesa do Meio Ambiente do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), avalia que falta divulgação. “Tem muitos prédios no Plano Piloto em que não sabem do retorno da coleta seletiva. E (os moradores) desconhecem que, se o governo não recolhe, eles podem ligar para as cooperativas, porque elas buscam. Estamos enterrando dinheiro enquanto poderíamos gerar renda”, destaca.

Coletores de materiais recicláveis e orgânicos na Sustentare Saneamento, Iago Aurélio Araújo Brito, 22 anos, e Dálio do Rosário Mendes, 55, percebem isso diariamente. Mesmo após o retorno do serviço, muitos moradores ainda não sabem da volta da coleta seletiva. “A empresa contratou mais gente para fazer panfletagem. Há alguns cidadãos conscientes, que sabem separar, mas , outros, não. Antes, a gente até parava para conversar, explicava a forma de descartar, porém, agora (com a pandemia), está um pouco complicado”, conta Iago.

O jovem sabe como o processo de separação faz a diferença. Apesar de trabalhar sempre com luvas, roupas que cobrem todo o corpo, óculos de proteção e botas, ele chegou a se ferir com uma agulha de seringa. “Fui pegar a sacola, da maneira correta que fazemos, e acabei me furando. Tive de tomar um coquetel por uma semana. Eram remédios muito fortes, precisei ficar afastado nesse período, porque sentia muita tontura e não tinha como ficar no caminhão”, relembra. “Há uma forma certa de fazer esse descarte. O morador podia colocar dentro de uma garrafa PET, por exemplo”, completa Iago.