O Estado de São Paulo, n.46285, 08/07/2020. Metrópole, p.A11

 

Unifesp diz que terapia eliminou HIV; cientistas acham cedo para falar de cura

Ludimila Honorato

08/07/2020

 

 

Em estudo internacional, pesquisador brasileiro relata ter conseguido remover vírus do organismo de paciente de 35 anos com inclusão de dois remédios em coquetel. Médicos veem resultado promissor, mas preliminar, e esperam confirmação por laboratório independente

Pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) realizaram uma pesquisa em escala global com pessoas infectadas pelo HIV e conseguiram eliminar o vírus do organismo de um paciente brasileiro, de 35 anos, que teve diagnóstico em 2012. A pesquisa foi apresentada ontem, na 23.ª Conferência Internacional de Aids, maior congresso sobre o tema do mundo. Apesar do estudo promissor, a comunidade científica afirma que resultado é preliminar e ainda não é possível falar em cura da aids.

De acordo com a universidade, os resultados representam mais um avanço nas pesquisas que, um dia, podem levar à descoberta da cura da doença. No mundo, três casos já são considerados como cura chamada erradicativa, em que o HIV foi completamente removido: um paciente de Berlim, outro de Londres e um em Düsseldorf, também na Alemanha. Todos eles passaram por transplante de medula óssea. Com isso, o caso brasileiro seria o primeiro a conseguir um bom resultado apenas com tratamento medicamentoso.

Coordenada pelo infectologista Ricardo Sobhie Diaz, diretor do Laboratório de Retrovirologia do Departamento de Medicina da Unifesp, a pesquisa da instituição contou inicialmente com 30 voluntários que apresentavam carga viral do HIV indetectável no organismo e faziam tratamento padrão com coquetéis antirretrovirais. Eles foram divididos em seis grupos e cada um desses grupos recebeu uma combinação de medicamentos, além do tratamento padrão.

O grupo que apresentou melhor resultado recebeu dois antirretrovirais a mais que os outros: uma droga mais forte chamada dolutegravir e o maraviroc, que "força" o vírus a aparecer, fazendo com que ele saia do estado de latência, uma espécie de esconderijo no organismo. Com isso, ele pode ser destruído pelo medicamentos.

Ainda segundo a Unifesp, outras duas substâncias prescritas potencializaram os efeitos das substâncias, a nicotinamida e a auranofina. Diaz constatou que os testes em células, em animais e em humanos, confirmam a maior eficiência da nicotinamida contra a latência do que outros dois medicamentos usados para esse fim e testados conjuntamente.

O paciente brasileiro começou a se tratar com medicamentos antirretrovirais dois meses após o diagnóstico de HIV, em 2012. Quatro anos depois, ele participou da pesquisa da Unifesp e realizou o tratamento por 48 semanas. Depois de 14 meses, o vírus continua sem ser detectado no organismo dele. "Esse caso é extremamente interessante, e realmente espero que possa impulsionar mais pesquisas sobre a cura do HIV", disse Andrea Savarino, médica do Instituto de Saúde da Itália que coliderou o estudo.

O infectologista José Valdez Ramalho Madruga, coordenador do Comitê de Aids da Sociedade Brasileira de Infectologia, destaca que a grande vantagem desse estudo é que o resultado foi obtido apenas com medicamento oral. Os outros casos conhecidos na ciência tiveram o transplante de medula como princípio. "É uma pesquisa muito interessante e um dado extremamente promissor. A chance de reproduzir isso em larga escala e muito maior", diz o pesquisador do Centro de Referência e Tratamento DST/AIDS.

Madruga pondera, no entanto, que esse foi um estudo à prova de conceito, ou seja, com um número pequeno de participantes para ver se a metodologia funciona. "Cabe estudo maior. A perspectiva agora é reproduzir esse estudo com maior número de pacientes."

Andrea Savarino também destaca que os outros quatro pacientes do grupo que receberam a mesma combinação medicamentosa não tiveram o vírus eliminado do organismo. "Pode ser que o resultado não seja passível de reprodução. Este é um primeiro estudo, que precisará ser ampliado."

Cautela. Na conferência em que o estudo foi apresentado, médicos discutiram os resultados e pediram cautela, conforme relata o jornal americano The New York Times.

Steve Deeks, pesquisador de HIV na Universidade da Califórnia em São Francisco (Estados Unidos), afirma que é muito cedo para dizer se o homem está realmente livre do vírus até que outros laboratórios independentes confirmem os resultados. Ainda assim, afirma, não está claro se o status do paciente é resultado da combinação de tratamento que ele recebeu. "Essas são descobertas empolgantes, mas são muito preliminares", diz Monica Gandhi, também especialista em HIV da Universidade da Califórnia.

Segundo ela, a nicotinamida tem sido usada em outros estudos sem esses resultados e nenhuma droga "funcionou até agora em termos de remissão em longo prazo". O fato de ser apenas um caso levanta dúvidas, apesar de ser promissor. Os pesquisadores do estudo devem testar o sangue do paciente para identificar se ele continuou ou não com os medicamentos antirretrovirais, o que poderia ter comprometido os resultados.

A pesquisa em torno de um tratamento eficaz contra o HIV também incluiu o desenvolvimento de uma espécie de vacina com as chamadas células dendríticas (células imunes), que conseguiu "ensinar" o organismo a encontrar as células infectadas e destruí-las.

Debate a distância. A Conferência Internacional de Aids é organizada pela Sociedade Internacional de Aids a cada dois anos e tem apoio do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (Unaids). O evento, que debate descobertas científicas sobre o HIV no mundo todo, ocorreria neste ano em São Francisco, mas está sendo realizado de maneira virtual por causa da pandemia do novo coronavírus.

Perspectiva

“É uma pesquisa muito interessante e um dado extremamente promissor. A chance de reproduzir isso em larga escala e muito maior”

José Valdez Ramalho Madruga

PESQUISADOR DO CENTRO DE REFERÊNCIA E TRATAMENTO DST/AIDS