Valor econômico, v. 21, n. 5104, 09/10/2020. Política, p. A6

 

Fux interrompe julgamento em que Celso de Mello deve ser derrotado

Isadora Peron

Luísa Martins

09/10/2020

 

 

Decano votou a favor que o presidente Jair Bolsonaro deponha em inquérito presencialmente

Em seu último julgamento como ministro no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), o decano Celso de Mello defendeu que o presidente Jair Bolsonaro deve prestar depoimento presencial no inquérito do qual é alvo por suposta interferência indevida na Polícia Federal (PF).

Mello se aposenta na terça-feira, mas pediu para que o caso fosse pautado antes de ele deixar a Corte. Conhecido por seus longos votos, ele falou ontem por mais de duas horas.

Após a manifestação do decano, o presidente do STF, Luiz Fux, encerrou a sessão. Ele não disse quando o julgamento será retomado. “Essa sessão deve se findar com a sua última palavra. Todos nós estamos aqui extremamente emocionados e, ao mesmo tempo, nos lamentando que esta será sua última lição na qualidade de ministro”, disse.

Parte da Corte defende que Bolsonaro tem a prerrogativa de prestar depoimento por escrito, mas havia a expectativa de que os ministros optariam por uma solução intermediária para não contrariar Mello às vésperas da sua aposentadoria. Com a continuidade do julgamento sem a presença do decano, os integrantes da Corte terão mais liberdade para se posicionar.

Em seu último voto no plenário, Mello reafirmou a máxima que vinha usando para se referir a Bolsonaro no processo, de que “ninguém, absolutamente ninguém” está acima da lei.

O decano explicou que a questão colocada é se o presidente da República, quando figurar como investigado, pode ou não depor por escrito. Para ele, Bolsonaro não tem essa prerrogativa, pois esse é um benefício que vale apenas para autoridades que são testemunhas em processos.

Mello defendeu que o presidente “também é súdito das leis, como qualquer outro cidadão deste país”. “Ninguém, absolutamente ninguém, tem legitimidade para transgredir e vilipendiar as leis e a Constituição de nosso país. Ninguém, absolutamente ninguém, está acima da autoridade do ordenamento jurídico do Estado”, afirmou.

Para ele, “o postulado republicano repele privilégios e não tolera discriminações, impedindo que se estabeleçam tratamentos seletivos em favor de determinadas pessoas”.

O ministro disse ainda que, hoje, a única previsão para que um investigado deponha por escrito é se ele for mudo ou surdo.

Em seu voto, o decano citou que, no passado, os ministros Edson Fachin e Luís Roberto Barroso autorizaram o então presidente Michel Temer (MDB) a depor por escrito, mas apontou que ele não concordava com as decisões.

O inquérito contra Bolsonaro foi aberto pela Procuradoria-Geral da República (PGR) a partir de declarações do ex-ministro Sergio Moro.

Com a aposentadoria do decano, o cenário mais provável é que o inquérito fique com o sucessor de Mello, o desembargador Kassio Marques, que ainda precisa ter o nome aprovado no Senado.

Ministros têm minimizado o fato de ele se tornar responsável por uma investigação aberta contra a pessoa que o indicou. Fux, no entanto, ainda pode determinar a redistribuição do processo a outro relator antes da nomeação do novo integrante do Supremo.

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Visto como ‘farol’, decano despede-se

Luísa Martins

Isadora Peron

09/10/2020

 

 

Depois de 31 anos no STF, ministro deixa como um de seus legados a devoção pela República

No dia em que Celso de Mello tomou posse como ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), em 17 de agosto de 1989, a democracia brasileira ainda engatinhava, na ressaca da ditadura. No dia em que deixará a Corte, 13 de outubro de 2020, o decano verá uma Constituição consolidada, ao menos em tese, a partir da jurisprudência que ele próprio ajudou a construir - principalmente para garantir as liberdades individuais e afastar qualquer resquício autoritário do regime militar.

Pelos colegas, Celso de Mello é considerado uma “bússola”, um “farol”, qualquer palavra que passe a ideia de referência. Nas homenagens prestadas ao longo da semana em razão de sua aposentadoria, os ministros destacaram que, para o decano, a República é uma devoção - algo que sempre ficou explícito em suas manifestações e decisões.

Ao Valor, o ministro Dias Toffoli o classificou como “um homem sábio e à frente de seu tempo, que traduziu em votos os anseios do povo por liberdade, igualdade e justiça e que consolidou o direito dos grupos vulneráveis, contumazmente postos à prova no Brasil”.

Não à toa, o voto do decano, relator no julgamento que declarou a omissão do Congresso Nacional ao não legislar contra a homofobia, foi o mais lembrado nos discursos de despedida. Das 155 páginas (foram seis horas e meia de leitura), a abertura é destacada como um primor:

“Sei que, em razão de meu voto e de minha conhecida posição em defesa dos direitos das minorias, serei incluído nos ‘índex’ mantidos pelos cultores da intolerância, cujas mentes sombrias - que rejeitam o pensamento crítico, repudiam o direito ao dissenso, ignoram o sentido democrático do pluralismo de ideias e se apresentam como corifeus de doutrinas fundamentalistas - desconhecem a importância do convívio harmonioso entre visões antagônicas.”

Proferido em fevereiro de 2019, o voto foi um prenúncio de que o ministro viria a se notabilizar pelas críticas abertas ao presidente Jair Bolsonaro, eleito sob a bandeira do conservadorismo e, à época, em seu segundo mês de governo. O embate do Executivo com o Supremo tinha ali as suas raízes - dias depois, Bolsonaro acusou o decano de “interferir” no Poder Legislativo.

Celso de Mello também deixa um legado na defesa da liberdade de expressão, em votos que “continuarão a ser observados pelo STF e pelas comunidades jurídica e acadêmica por muitas décadas”, segundo disse ao Valor o ministro Luís Roberto Barroso.

Em 2011, por exemplo, Mello conduziu o entendimento de que a Marcha da Maconha não configurava apologia ao crime, mas mero exercício da liberdade de reunião. Naquele mesmo dia, o ministro Ricardo Lewandowski reconheceu que o decano havia feito um voto paradigmático.

“Nada se revela mais perigoso do que a pretensão do Estado de reprimir a liberdade de expressão, mesmo que se objetive expor ideias que a maioria da coletividade repudie, pois o pensamento há de ser permanentemente livre”, disse o decano, na ocasião.

Durante a sessão da Segunda Turma, na terça-feira, o ministro Gilmar Mendes citou marcas que o decano deixa para a jurisprudência penal. “Seus votos ajudaram a assegurar o respeito à intimidade e à privacidade frente às tendências de abuso por parte dos detentores do poder”, observou o presidente do colegiado.

É o caso da liminar concedida por Celso de Mello para legitimar o direito ao silêncio em interrogatórios, depois que uma mulher foi presa apenas por exercer seu direito de não produzir provas contra si própria.

Embora não tenha sido o relator da ação que resultou na derrubada da prisão após condenação em segunda instância, o voto do decano naquele julgamento, com duas horas de duração, também costuma ser incluído no rol de momentos marcantes de sua trajetória - uma “ode à presunção de inocência”, como definiu um ministro próximo, sem se furtar de repudiar os altos índices de criminalidade no Brasil.

Para o decano, a solução para isso está em uma reformulação do sistema processual para torná-lo mais ágil, o que cabe ao Congresso, e não na “inaceitável desconsideração” do direito de ser considerado inocente até que estejam esgotados os recursos.

Celso de Mello completa 75 anos em 1º de novembro, mas vai antecipar a aposentadoria por razões médicas. Com o fim de sua carreira como ministro do STF, o decano se torna espectador dos rumos de seu próprio legado nas mãos dos ministros que serão indicados por Bolsonaro.

O desembargador Kassio Marques, que deve ser aprovado como substituto de Celso de Mello, é considerado um garantista em matéria penal, mas Bolsonaro tem evidenciado o fato de ele ser católico, o que pode representar revés na chamada pauta de costumes. Para 2021, o presidente pretende escolher um nome “terrivelmente evangélico”.