O Estado de São Paulo, n.46286, 09/07/2020. Política, p.A12

 

PL das fake news preocupa especialistas

Rafael Moraes Moura

09/07/2020

 

 

Analistas ouvidos pelo 'Estado' apontam que texto em discussão na Câmara pode oferecer risco à privacidade e à liberdade de expressão

Rito. Aprovado no Senado, texto segue para a Câmara dos Deputados; Presidente Bolsonaro já disse que pode vetar projeto

O polêmico projeto das fake news, que está sob análise na Câmara, pode limitar a liberdade de expressão, prejudicar o debate democrático e abrir margem para excessos que põem em risco a privacidade dos usuários, alertam especialistas ouvidos pelo Estadão. Entre as medidas presentes na proposta, aprovada pelo Senado, estão a exclusão de contas falsas, a moderação do conteúdo publicado em plataformas e o armazenamento de registros de mensagens disparadas por celular. O presidente Jair Bolsonaro já avisou que vai vetar o texto, caso seja aprovado pelos deputados.

Por tratar de um tema tão complexo e delicado, o projeto deveria ser amplamente discutido pelos parlamentares e a sociedade brasileira, e não aprovado a toque de caixa, avalia o professor Bruno Bioni, fundador da Data Privacy Brasil de Pesquisa, associação voltada para a área de privacidade e proteção de dados. Na opinião de Bioni, um dos trechos mais problemáticos do projeto das fake news é o que prevê que serviços de mensagem, como o Whatsapp e o Telegram, deverão guardar os registros dos envios de mensagens em massa por três meses.

O texto impõe o armazenamento quando a mensagem disparada alcançar ao menos mil usuários. "Como isso vai ser operacionalizado? Você vai criar por esse prazo de três meses um catálogo muito preciso sobre como as pessoas se comunicam, o que é problemático para o direito à privacidade e proteção de dados pessoais", disse o professor.

"Quando você cria essa infraestrutura de vigilância, você flexibiliza o princípio da presunção de inocência, partindo do pressuposto de que todas as pessoas podem praticar ilícitos", acrescentou.

Contas falsas. O advogado Pablo Cerdeira, coordenador do Centro de Tecnologia para o Desenvolvimento da FGV, avalia que o veto a contas falsas pode trazer consequências indesejáveis. De acordo com o projeto, as redes sociais e os serviços

de mensagens privados deverão vetar o funcionamento de "contas inautênticas", definidas pelo próprio texto como aquelas que foram criadas com o propósito de "assumir ou simular identidade de terceiros para enganar o público". "Não sei se a gente precisa tornar mais fácil identificar alguém na internet. Suponha um grupo de mulheres que se reúnam num grupo do Whatsapp pra debater assédios que sofrem no trabalho. Talvez queiram compartilhar experiências sem se expor", disse Cerdeira.

"Há casos em que isso seria interessante, se você imaginar alguém que está espalhando discurso de ódio, mas por outro lado abre espaço para perseguir 

minorias e grupos opositores", disse. Outro ponto criticado do projeto de lei é o que trata de moderação das redes sociais. "É difícil fazer certos julgamentos que são subjetivos, em certo grau, imagina estabelecer critérios de moderação aplicados em escala. Difícil exigir um grau de qualificação do debate com critérios rigorosos em massa", afirmou Rodrigo Karolczak, pesquisador do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV Direito SP.

Para a presidente do Instituto Palavra Aberta, Patricia Blanco, "não existe bala de prata". "É necessário ampliar o espaço da educação midiática em qualquer lei que tenha como objetivo combater a desinformação."

PARA ENTENDER

Polêmicas do projeto de lei

• Identidade do usuário

Projeto obriga redes sociais e aplicativos a excluir contas falsas. É permitido abrir contas com nome social ou pseudônimo. Robôs são permitidos, desde que a conta seja identificada como automatizada.

Polêmica

Relator do projeto, senador Angelo Coronel (PSD-BA) diz ser necessário adotar medidas para restringir o anonimato na internet. "Não é admissível que a sociedade se veja refém daqueles que se escondem atrás de perfis falsos para disseminar ameaças." Já para o relator da ONU para Liberdade de Expressão, Edison Lanza, o dispositivo "afeta a privacidade das comunicações e o direito de participar de maneira anônima no espaço público".

• Rastreabilidade

Pelo projeto de lei aprovado, serviços como Whatsapp e Telegram devem guardar registros de "encaminhamentos de mensagens em massa" (envio de uma mesma mensagem por mais de 5 usuários em um período de até 15 dias) pelo prazo de três meses.

Polêmica

Coronel afirma que o dispositivo serve para preservar o registro da cadeia de encaminhamento de mensagens, possibilitando identificação de autor de mensagem ilícita. A diretora da International Fact Checking Network, Cristina Tardáguila, discorda. "Rastrear o caminho percorrido por qualquer mensagem é violar sua privacidade."

• Moderação

Os usuários devem ser notificados em caso de denúncia ou de medida aplicada em função dos termos de uso das plataformas ou da lei. E os provedores devem garantir a todos a possibilidade de recurso quando houver decisão de remover conteúdos ou contas.

Polêmica

O projeto afirma que a moderação de conteúdo pelas plataformas deve ser "transparente". "Eventual restrição de conteúdos deve seguir ordem judicial, por meio de procedimento que respeite a defesa e o contraditório", diz Angelo Coronel. No entanto, para Jonas Valente, da UNB e da Coalizão Direitos na Rede, ao determinar um direito de resposta a quem se sentir "ofendido" nas redes, o projeto "dá margens a interpretações diversas".