O Estado de São Paulo, n.46287, 10/07/2020. Metrópole, p.A16

 

OMS admite risco de transmissão aérea

Érika Motoda

10/07/2020

 

 

Mudança vem após pressão de cientistas, mas entidade pede mais estudos; chance de contágio em ambientes fechados afeta reabertura

Após pressão de pesquisadores, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou ontem informe científico em que passa a considerar o risco de transmissão do novo coronavírus pelo ar. Com isso, máscaras passam a ser recomendadas também para ambientes fechados. Nesta semana, 239 cientistas de 32 países endereçaram uma carta à entidade afirmando que há evidências de que haja esse tipo de contágio – o que influencia no desenho de protocolos de abertura de espaços como restaurantes, igrejas, cinemas, faculdades e academias.

Segundo o protocolo atualizado da OMS, "alguns procedimentos médicos podem produzir gotículas muito pequenas (chamadas núcleos de aerossolizadas ou aerossóis) que são capazes de permanecer suspensas no ar por longos períodos de tempo". Ainda conforme a entidade, os aerossóis com vírus "podem ser inalados por outras pessoas se não estiverem com equipamento de proteção individual apropriado".

A OMS ainda citou relatos de surtos relacionados a ambientes fechados, como restaurantes, locais de culto ou de ginástica, e a transmissão aérea em espaços lotados não pode ser descartada. Advertiu, porém, sobre a "urgência" de mais investigação científica sobre o tema.

Antes, a organização vinha argumentando que o novo coronavírus se espalha principalmente pelas gotículas respiratórias maiores que, uma vez expelidas por pessoas infectadas em tosses e espirros, caem rapidamente no chão. Para a transmissão aérea, a OMS alegava ausência de evidências convincentes.

Ao tossir ou espirrar, o infectado espalha gotículas de 5 a 10 micrômetros. Geralmente, essas gotículas caem no chão ou em superfícies a cerca de dois metros de distância. Já as partículas menores ainda, abaixo de 5 micrômetros, podem ficar suspensas no ar durante horas e "voar" por dezenas de metros. Nesse período, podem infectar quem estiver por perto.

É o que ocorreu em um restaurante em Guangzhou, na China, onde três famílias comemoraram o Ano Novo Chinês em 24 de janeiro, segundo estudo liderado pela Universidade de Hong Kong. Os grupos se sentaram em três mesas alinhadas, a uma distância considerada apropriada pelos protocolos sanitários, mas em um salão com pouca ventilação. Como uma pessoa já estava contaminada, acredita-se que o ar-condicionado tenha carregado o vírus para as outras, que testaram positivo dias depois. Outros clientes, fora da mesma "linha" de ar, não foram infectados; os garçons também não.

"Sempre se soube que vírus se transmitem pelo ar. A distância de 1,5 metro é apropriada para gotículas muito grossas. Mas o vírus tem tamanho que torna possível o voo em partículas. O tempo de residência de um aerossol de 1 ou 2,5 micrômetros, em ambiente fechado, é de 3 a 4 horas", explica Paulo Saldiva, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e um dos cientistas que assinam a carta à OMS.

"Em um ambiente hospitalar, ninguém tem dúvidas de que o coronavírus se transmite pelo aerossol fino. Por isso que se usa uma máscara diferente, a N95, com maior capacidade de filtragem. Tem que usar máscara, mas em um restaurante, por exemplo, a pessoa não come através da máscara", afirma.

Para ele e para os demais 238 signatários, medidas como lavar as mãos e não entrar em contato com fluidos de infectados são in suficientes. A carta foi idealizada por Lidia Morawska e Donald Milton, das Universidades de Tecnologia de Queensland (Austrália) e de Maryland (EUA), respectivamente, no momento em que o Brasil e mais países reabrem a economia.

Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos EUA, disse ontem que ainda não há evidências sobre a transmissão aérea, mas que é "razoável" presumir que ela ocorra. Só um pequeno número de doenças tem a transmissão atribuída ao espalhamento via aerossóis ou pequenas partículas flutuantes, como sarampo e tuberculose.

Ventilação. "Distanciamento é importante, mas nada garante que se um doente entrar lá não vai transmitir o vírus. Se tivesse ventilação no ar, a chance de ter o aerossol em suspensão é muito menor", diz Saldiva. "Medidas simples, como abrir a janela ou um sistema de exaustão, ajudam muito na dispersão do vírus com a circulação do ar. No comércio, você vê loja com meia porta fechada e uma portinha com barricada dentro. O ideal é colocar a barricada e levantar totalmente a porta."