Título: As regras mudaram
Autor: Craveiro , Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 26/02/2013, Mundo, p. 14
A três dias de abandonar o comando da Igreja Católica e deixar vago o trono de São Pedro, Bento XVI cumpriu ontem com o esperado e promulgou o Motu Propio. "Deixo ao Colégio Cardinalício a faculdade de antecipar o começo do conclave se constar que estão presentes todos os cardeais eleitores, como também a possibilidade de atrasá-lo, se houverem motivos graves", afirma o decreto, assinado pelo papa alemão. A regra original, criada pelo polonês João Paulo II, estabelecia um prazo de 15 a 20 dias, a contar da vacância da sede pontifícia, para a organização da escolha do sucessor. Apesar da alteração na lei, o Vaticano não divulgou se a eleição do novo pontífice será antecipada, nem estipulou uma data para o início do processo histórico.
O italiano Marco Tosatti, vaticanista do La Stampa, considera a decisão "bastante razoável". "Bento XVI anunciou sua aposentadoria em 11 de fevereiro e disse que a "Sede vacante" terá início na próxima quinta-feira, às 20h (16h em Brasília). Isso significa que os cardeais estarão aqui em Roma para encontrar o papa pela manhã", declarou ao Correio, por e-mail. "O Colégio Cardinalício teve pelo menos duas semanas para meditar sobre o futuro da Igreja."
Enquanto prepara a própria transição, Bento XVI mantém um processo de limpeza na Cúria Romana, ao aceitar a renúncia do cardeal escocês Keith O"Brien (leia nesta página) e ao se reunir, em caráter privado, com os também cardeais Julian Herranz (Espanha), Jozef Tomko (Eslováquia) e Salvatore De Giorgi (Sicília). Do encontro com os três religiosos, ficou estabelecido que o inquérito de 300 páginas sobre o caso VatiLeaks será mostrado apenas aos próximo papa. "O Santo Padre decidiu que os atos dessa investigação, conhecida apenas por ele, permaneçam exclusivamente à disposição do novo papa", afirma o Vaticano, por meio de um comunicado oficial. Na semana passada, jornais italianos revelaram que o documento traria revelações bombásticas sobre o alto clero — inclusive denúncias de corrupção, uma rede de encontros entre homossexuais dentro da Santa Sé e disputas pelo poder. No último sábado, a Secretaria de Estado do Vaticano qualificou o suposto conteúdo de "completamente falso".
Tosatti contou não ter ficado perplexo com a promulgação do Motu Propio. "Eu não estou surpreso. Os cardeais poderiam ter decidido por conta própria, sem a necessidade de mudarem a lei. No entanto, atuar dessa forma abriria um precedente muito perigoso de quebra de normas na Igreja", alertou. Ex-aluno de Bento XVI, o padre norte-americano Josef Fessio explica que o ineditismo da renúncia papal por motivo de saúde forçou a Santa Sé a adotar uma postura mais flexível em relação ao conclave. "As regras tinham sido feitas para o caso de morte do pontífice. Elas precisavam dar tempo para que os cardeais chegassem ao Vaticano, além de firmar um período para os funerais e para o luto. Por isso, não combinam com a situação atual. Como Bento XVI segue muito a razão, ele as tornou menos rígidas", comentou Fessio. "Com a renúncia do papa, os cardeais não precisam esperar, sem necessidade, para iniciar o conclave."
O vaticanista italiano concorda. "Quanto mais rápido houver um novo papa, melhor", admitiu Tosatti, que compara a situação a qualquer governo. "Na Igreja, esse sentimento talvez seja mais forte. Para os católicos, o papa é mais central e importante do que um presidente ou um premiê."
Investigação
Citado pelo jornal La Stampa, o padre Federico Lombardi, porta-voz do Vaticano, explicou que os cardeais Herranz, Tomko e Di Giorgi saberão até que ponto poderão informar detalhes do relatório sobre VatiLeaks aos colegas, durante reuniões pré-conclave. Somente os três, além de Bento XVI, poderão avaliar se o conteúdo do inquérito teria a capacidade de influir na eleição pontifícia.
O padre italiano Ariel Levi Di Gualdo, um estudioso do suposto lobby gay no Vaticano, elogiou a postura do líder católico no que diz respeito ao documento. "Eu acredito que a prudência do papa pesa a favor dele. Nós não sabemos que conhecimentos e de segredos estão trancados em seu coração", avaliou, por e-mail.
Brasileiros viajam a Roma Dom Claudio Hummes e dom Raymundo Damasceno viajaram na tarde de ontem para Roma, a fim de participarem da tradicional audiência geral de quarta-feira e da reunião de despedida com Bento XVI, depois de amanhã. O cardeal e arcebispo metropolitano de São Paulo, dom Odilo Scherer, deve embarcar para a Itália ainda hoje. Os arcebispos dom João Braz de Aviz (Brasília) e dom Geraldo Majella Agnelo (Salvador) também ajudarão a escolher o próximo pontífice. Aviz, inclusive, é um dos cotados ao cargo de líder máximo da Igreja Católica.
Ação pacificadora
"A promulgação do Motu Propio foi mais uma manobra desenhada para tentar sufocar qualquer desconforto com a instabilidade percebida na instituição do pontificado ante a renúncia do que uma consideração da urgência de reformas. É importante para o Vaticano e para a Igreja em todo o mundo que a inauguração do Ministério Petrino do Bispo de Roma possa trazer celebração. Qualquer período longo de "Sede vacante" poderia levantar os espectros de desunião e de falta de visão na liderança da Igreja."