Correio braziliense, n. 20950, 02/10/2020. Cidades, p. 17

 

Entrevista - José David Urbaez

Jéssica Gotlib 

02/10/2020

 

 

A utilização incorreta do termo “imunidade de rebanho” é um dos principais problemas no combate à pandemia neste momento, explicou ao CB.Saúde — parceria do Correio com a TV Brasília — o médico infectologista e o diretor científico da Sociedade de Infectologia do Distrito Federal, José David Urbaéz. De acordo com o médico, usar esse conceito para falar sobre a erradicação da transmissão do vírus por meio da infecção da população, e não de uma vacinação massiva, é um erro grave.

O que significa a imunidade de rebanho?

Primeiro, essa palavra rebanho, a gente não gosta muito de usar porque ela animaliza, mas, na realidade, esse é um termo da vacinologia. Desde que nós tivemos a vacina como um instrumento de controle de doença infecciosa, tem cálculos que se faz a partir da transmissibilidade de cada agente e, dessa forma, você consegue enxergar um verdadeiro rebanho, ou seja, um número de pessoas que você deve vacinar para que não aconteça mais a transmissão daquele agente infeccioso. Hoje, a gente tem tido uma situação atípica, em que esse termo de imunidade de rebanho, que a gente chama mais de imunidade coletiva, imunidade de grupo, está sendo extrapolado para o efeito que tem a infecção natural dentro de grupos populacionais em territórios definidos. Cidades, países, continentes. E isso traz uma enorme confusão porque, desde o momento em que você acredita que isso possa ser uma política pública, você entra em uma seara extremamente perigosa, de risco.

O governador Ibaneis Rocha disse que o DF está próximo dessa proteção coletiva. Nesta semana, uma pesquisa da Universidade de Brasília (UnB) mostrou que 20% da população do DF foi infectada. Na sua avaliação, qual o cenário local?

Não existe essa tal proteção. Talvez, a cifra da UnB possa ser mais próxima da população, ou, talvez, a gente tenha uma cifra até maior em outro cenário. O importante é nós reconhecermos que os seres humanos têm comportamentos muito diferentes. Isso faz com que, quando você fala de proteção ou de imunidade, você tenha que falar de heterogeneidade. Para as pessoas entenderem direito, a oportunidade de o vírus se transmitir é muito maior em uma pessoa que mora em um local distante, na periferia, onde ela tem que se submeter a um transporte público com pessoas aglomeradas, esse transporte público demora duas, três horas, para chegar no ponto de destino, e ela está dentro de uma habitação onde não tem suficiente espaço vital para manter o distanciamento mínimo de dois metros. Quando você fala de uma outra pessoa que tem carro particular, um apartamento espaçoso onde moram duas pessoas, onde ele ou ela atua em teletrabalho, é muito simples você perceber que o risco desse outro indivíduo é absolutamente diferente.

Quando se diz que estamos com imunidade de grupo, as pessoas começam a se comportar achando que estão protegidas?

Isso é fundamental. A fala nossa, dos médicos, dos cientistas, dos epidemiologistas, contraria o desejo das pessoas sempre. E a gente sempre fala contrariando, também, o conforto, o chamado normal. E, quando você, com uma informação dessa natureza, que confirma esse sentimento equivocado das pessoas, você está induzindo, de forma muito potente, que as pessoas não usem a máscara em 100% dos lugares e do tempo, que não façam distanciamento, que não higienizem as mãos e que permaneçam o menor tempo possível em circulação. É óbvio que você convida as pessoas a terem comportamentos de que a gente não está em pandemia. E a gente sabe que a pandemia está em atividade.

Pensando em outros países que enfrentaram a pandemia antes da gente, a Europa começa a encarar uma segunda onda. Esse também é um alerta para o Brasil?

Você tem dois países clássicos que a gente sempre cita. A Suécia apostou em deixar livremente o vírus circular entre pessoas, aparentemente, sem risco e que dessa maneira você faria um cinturão de segurança a partir do desenvolvimento da imunidade coletiva. Não aconteceu. Foi desastroso. As taxas de letalidade da Suécia, quando comparadas com Finlândia e Dinamarca, foram extremadamente mais altas para realidades de países semelhantes, nórdicos. Você, com isso, tem um suporte muito importante. Igual aconteceu no Reino Unido, onde tem, ainda, recordes e muita letalidade. E, estamos falando em países com recursos e com uma estrutura de saúde extremadamente bem-feita. Quando você vê o caso da Alemanha, você observa o outro lado da moeda. Uma racionalidade em termos de manejo epidemiológico. Inclusive, a Angela Merkel, no comitê epidemiológico, tem antropólogos, filósofos e psicólogos. Porque a pandemia é muito mais do que um processo epidemiológico. É uma coisa que acomete o ser humano em todas as suas estruturas.