Título: Papa no radar do SNI
Autor: Luiz, Edson
Fonte: Correio Braziliense, 25/02/2013, Mundo, p. 10

Há 25 anos, já se imaginava que a Igreja Católica tomaria rumos conservadores com o papa João Paulo II, apesar de seu perfil moderado. Por trás dessa tendência estava o prefeito da Sagrada Congregação, o então cardeal Joseph Ratzinger, que comandava a ala mais ortodoxa do clero. A apreciação sobre o atual pontífice foi feita em 1988 pelo Serviço Nacional de Informações (SNI, o órgão de inteligência do regime militar), que considerou “benéfica para o Brasil” a nova postura da Cúria Romana. Os motivos, entre outras coisas, eram a censura a livros de religiosos esquerdistas e um controle maior sobre as atividades da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

A avaliação sobre o Vaticano e Ratzinger, hoje papa Bento XVI, conta de um documento de três páginas produzido pela Agência Central do SNI e distribuído pelo Conselho de Segurança Nacional (CSN), ligado à Presidência da República. Os arapongas brasileiros fizeram outras análises globais sobre o momento vivido pela Igreja, principalmente mostrando os reflexos sobre o Brasil. O documento relacionado ao cardeal Ratzinger é intitulado “Vaticano – Conservadores exacerbam ações contra progressistas. Reflexos no Brasil” e datado de 9 de março de 1988 (veja fac simile).

As mudanças no Vaticano, que passou a ser controlado mais pela ala conservadora, ocorreram 10 anos depois da ascensão de João Paulo II. O relatório do serviço secreto brasileiro reconhece que o papa procurava assumir uma postura equilibrada, mas observa: “Nos bastidores, sua santidade empresta maior respaldo às ações dos conservadores”. Na avaliação do SNI, João Paulo II dava uma imagem de direita à Igreja, mas sem adotar o extremismo.

“Essa postura de João Paulo II serve para explicar por que, no momento, os conservadores, membros da Cúria Romana e sob o comando do cardeal Joseph Ratzinger, estão em franca atividade, conquistando espaço e procurando nortear os rumos do catolicismo”, prossegue o texto. “Os reflexos dessa atuação são sentidos na América Latina e, de modo especial, no Brasil.” O relatório, elaborado há quase 25 anos, enumera indicações sobre a influência da ala conservadora, liderada por Ratzinger.

Reforma conservadora

Dois dos exemplos citados no documento são decisões tomadas pelo hoje papa Bento XVI. Um diz respeito à mudança na Constituição do Vaticano, enquanto a outra se refere a um controle maior sobre as publicações e as editoras católicas. “O cardeal Ratzinger, prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé (o mais influente ministério do Vaticano), está encetando uma profunda reforma, por ele chamada de “restauração na Santa Sé”, relata o documento, observando que as medidas eram administrativas e incluíam até mesmo a nomeação de cardeais (veja quadro).

“Na prática, são os cardeais que decidem a própria sucessão papal e são nomeados pelo Sumo Pontífice. Mas, nos bastidores, a mão de Ratzinger sublinhará as aptidões dos mais conservadores. Portanto, esse projeto, que deverá ser aprovado em jun (junho) 88, incluiu a sucessão de João Paulo II e os rumos da Igreja no século vindouro”, analisava o SNI. As medidas administrativas adotadas pelo Vaticano, no ponto de vista do serviço secreto brasileiro, atingiram diretamente o clero no país, considerado à época “progressista” em relação à Santa Sé. O bispo auxiliar de São Paulo, dom Luciano Mendes de Almeida, por exemplo, foi para Mariana, no interior de Minas Gerais. Além disso, a arquidiocese da capital paulista foi dividida em várias dioceses autônomas.

"Da perspectiva do SNI, as ações do então cardeal Ratzinger eram convenientes para o regime militar. “A ação dos conservadores da Santa Sé incide na vida nacional, de modo benéfico. Além de necessária, a ação do Vaticano deixou também evidente que o acompanhamento das atividades da Igreja no Brasil, pela Cúria Romana, pode frear as propostas radicais da CNBB”, analisaram os agentes, na época. “Por isso, o atual momento mostra-se oportuno para o fortalecimento do segmento conservador da Igreja”, finaliza o relatório." Nos bastidores, a mão de Ratzinger sublinhará as aptidões dos mais conservadores Vaticano – Conservadores exacerbam ações contra progressistas. Reflexos no Brasil, Relatório do SNI

Dom Paulo na mira Na avaliação do Serviço Nacional de Informações (SNI), a Arquidiocese de São Paulo seria a mais prejudicada com as reformas promovidas sob o comando da ala conservadora da Igreja, liderada pelo cardeal Joseph Ratzinger, hoje papa Bento XVI. Os agentes secretos brasileiros afirmavam viam na Cúria paulistana o epicentro do problema teológico da Igreja no Brasil, em grande parte pela atuação do cardeal-arcebispo dom Paulo Evaristo Arns, que vinha merecendo especial atenção do Vaticano. “Afinal, o cardeal Arns é o grande defensor dos irmãos Boff e de frei Betto, transformou os seminários paulistas em ‘casas de formação’ onde os retratos de Che Guevara substituíram os ícones de Cristo. Através da Comissão de Justiça e Paz, aglutinou as esquerdas contra a ‘ditadura militar’, tornando-se um líder político”, ressalta o documento do SNI. “Na realidade, a Arquidiocese de São Paulo é uma espécie de igreja dentro da Igreja”, completa o relatório.

Tanto no Vaticano quanto no Brasil, os conservadores passaram a fazer uma espécie de censura. No país, conforme a análise do SNI, o teólogo Leonardo Boff, a quem o documento se referiu como pessoa ligada a Arns, seria o maior prejudicado. Boff, um dos defensores da Teologia da Libertação, foi obrigado pelo atual papa a observar silêncio — um dos motivos que o levaram a deixar a Igreja, anos mais tarde. “No Brasil, o recrudescimento da censura (sob o comando de Ratzinger) atinge diretamente as principais editoras católicas”, observam os agentes. Umas delas era justamente a que publicava os livros de Boff. (EL)

Rivais quase íntimos Coincidentemente, o papa Bento XVI já tinha uma relação com o teólogo Leonardo Boff antes da polêmica por causa da Teologia da Libertação. O também teólogo Joseph Ratzinger escrevia para a revista internacional Concilium, em que o brasileiro era integrante do conselho editorial. As informações também fazem parte do acervo de documentos sigilosos do governo brasileiro envolvendo o Vaticano. Trata-se de um informe produzido pelo Centro de Informação e Segurança da Aeronáutica (Cisa).

» Cardeais da era Ratzinger

Em junho de 1988, 24 bispos foram elevados a 24 cardeais. Dois eram brasileiros:

Lucas Moreira Neves Na época arcebispo de Salvador, anos depois foi chamado para a Cúria Romana, onde se tornou prefeito da Sagrada Congregação para os Bispos. Amigo de João Paulo II, o religioso mineiro sempre foi cotado para assumir a chefia da Igreja, mas não chegou a participar de nenhum conclave.

José Freire Falcão Hoje arcebispo-emérito de Brasília, chefiava na época a Igreja na capital federal e foi um dos participantes do conclave que elegeu Bento XVI, em 2005. Por já ter completado a idade limite de 80 anos, não votará na escolha do novo papa, em março próximo.