Correio braziliense, n. 20954, 06/10/2020. Saúde, p. 12

 

Nobel para descobridores do vírus da hepatite C

Vilhena Soares 

06/10/2020

 

 

No momento em que o mundo busca maneiras de combater um vírus que, em pouco mais de 10 meses, causou mais de 1 milhão de mortes, os agraciados pelo prêmio Nobel de Medicina são responsáveis pela descoberta de outro patógeno que segue desafiando profissionais de saúde e autoridades da área: o da hepatite C. Os americanos Harvey Alter e Charles Rice e o britânico Michael Houghton contribuíram, de formas distintas, para a identificação do agente infeccioso que mata 400 mil pessoas a cada ano, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). De acordo com o  júri do Comitê Nobel, o trabalho do trio, que durou quase 50 anos, foi essencial para que surgissem medidas preventivas e uma gama de tratamentos que têm contribuído na luta para a erradicação da enfermidade. Além disso, a premiação reforça a importância de pesquisas na área de virologia.

No fim dos anos de 1970, Harvey Alter observou que, durante as transfusões sanguíneas, acontecia o “ataque” de um agente misterioso no fígado que não estava relacionado nem à hepatite A nem à hepatite B. Anos mais tarde, em 1989, Michael Houghton e sua equipe descobriram a sequência genética desse vírus. A partir de estudos iniciados na década de 1990, Charles Rice conseguiu desvendar como o patógeno se replicava, uma informação essencial para o desenvolvimento de medicamentos capazes tratar a hepatite C. O pesquisador “apresentou a prova final de que o vírus da hepatite C poderia provocar, sozinho, a doença”, explicou Patrick Ernfors, presidente do comitê do Nobel.

Os escolhidos repercutiram o prêmio e relacionaram o trabalho que desenvolveram com a atual crise sanitária.  “Há uma grande diferença entre os anos de 1970, 1980 e agora. A tecnologia é tão avançada que é assombroso”, disse Harvey Alter, 85 anos. O pesquisador do Instituto Nacional de Saúde (NIH, em inglês), nos Estados Unidos, também ressaltou a importância de seguir o tempo da ciência na corrida para encontrar a cura da covid-19. “É preciso planejar a longo prazo, pensar a longo prazo e ter a liberdade de buscar coisas que não tenham um efeito imediato”, justificou.

Segundo Michael Houghton, 69 anos, diretor do Instituto de Virologia da Universidade de Alberta, no Canadá, o prêmio significa um reconhecimento para todos especialistas que se dedicam a estudar patógenos. “Espero que esse prêmio, junto com a terrível epidemia da covid-19, destaque a importância da virologia para a humanidade. Isso pode afetar muitos de nós”, disse em entrevista virtual concedida à imprensa.

Charles Rice, por sua vez, afirmou estar “otimista” quanto ao futuro da luta contra o vírus e a covid-19. “Acho que isso nos ensinou muito sobre a ciência em geral: quando há um problema urgente e as pessoas ao redor do mundo se mobilizam para trabalhar nesses problemas, um grande progresso pode ser feito, embora não seja possível esperar um tratamento ou uma vacina em uma semana”, afirmou o pesquisador de 68 anos da Universidade de Rockfeller, nos Estados Unidos.

O presidente do comitê também enfatizou que os avanços conquistados a partir do trabalho do trio de laureados têm relação com a atual crise de saúde. “Acredito que é bastante fácil vincular com a situação de agora. A primeira coisa a fazer é identificar o vírus envolvido e, uma vez feito, esse é o ponto de partida para o desenvolvimento de tratamentos para a doença, assim como vacinas. A descoberta viral é um momento crítico”, justificou Patrick Ernfors.

Marco

Segundo Carlos Eduardo Bernardo Melo, presidente da Sociedade Brasileira de Hepatologia (SBH) e professor titular da Escola de Medicina e Cirurgia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ), o longo trabalho do trio de cientistas é responsável por um marco na área de hepatites virais. “Essa premiação é um reconhecimento de pelo menos quatro décadas de trabalho. Desde a década de 1970, sabíamos que existiam dois tipos de hepatite, a A e a B, mas aconteciam alguns episódios que não se encaixavam em nenhum desses dois problemas. Foi aí que surgiu a nomenclatura tipo não A e não B”, explicou o brasileiro. “Depois de uma década, ele foi identificado e isolado. Demoraram cerca de 15 anos para ter essa definição completa.”

O médico destacou que a identificação do patógeno abriu as portas para uma série de avanços importantes no combate à doença, como medicamentos e medidas que ajudaram a reduzir o número de infectados. “A partir dessas descobertas, demos início a ações importantes, como a triagem feita em bancos de sangue. Passaram a testar os doadores, o que baixou a quantidade de casos de hepatite C pós-transfusional”, disse. “Também tivemos o início das pesquisas de medicamentos. Nos últimos cinco anos, houve uma revolução, com remédios muito avançados, com até 98% de eficácia, tudo graças ao conhecimento em relação a essa doença.”

Harvey Alter também lembrou que as abordagens para combater a hepatite C estão tão evoluídas que não são necessários melhores testes ou medicamentos. “O que precisamos é de vontade política para erradicar (a doença)”, avaliou o Nobel de Medicina, que vê a mesma necessidade na luta contra a covid-19. “O principal a se fazer é testar e tratar. Se tivéssemos um grande teste rápido e um grande tratamento para a covid-19, seria o mesmo princípio.”

Outros destaques

Outros cientistas foram mencionados pelo júri responsável pela escolha dos vencedores do Nobel de Medicina durante o anúncio da premiação. O alemão Ralf Bartenschlager, pela “pesquisa fundamental” na área. E o americano Michael Sofia, pelo desenvolvimento do medicamento sofosbuvir, criado em 2010 e considerado um marco no tratamento da hepatite C.

Palavra de especialista

Um legado valioso

“É um reconhecimento merecido e muito válido para os cientistas escolhidos. Nós sabíamos dessa doença por muito tempo, mas não conseguíamos dizer qual era o agente que a causava. A partir dessa descoberta, aconteceu uma evolução muito rápida. No começo, tínhamos medicamentos que tinham 10% de eficácia. Em um período curto, demos um salto para drogas que, hoje, têm entre 95% e 98% de eficácia. É algo muito próximo da cura, foi uma evolução muito rápida. A mensagem passada por essa premiação, principalmente agora que buscamos conhecer o patógeno da covid-19, é que, quanto mais sabemos do agente causador do problema de saúde, mais temos condições de tratá-la. O conhecimento gerado sobre um vírus é um legado valioso.”

Werciley Junior, infectologista do Hospital Santa Lúcia, em Brasília

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Apenas 20% sabem da infecção

06/10/2020

 

 

A hepatite C é considerada uma doença silenciosa, sem sintomas iniciais. Com o tempo, porém, o vírus instala-se nas células do fígado, o que pode causar complicações graves, como cirrose e câncer. Para evitar esses danos, é  necessário que o diagnóstico da enfermidade ocorra cedo, o que nem sempre acontece. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), apenas uma em cada cinco pessoas com hepatite C sabe que tem a doença.

“Há uma parcela da população que tem o patógeno, mas não sabe. Por isso, fazemos campanhas para que pessoas com mais de 40 anos que tiveram contato com formas de transmissão do vírus no passado e grupos mais vulneráveis, como a população carcerária e quem tem mais contato com agulhas, façam a triagem pelo menos uma vez”, explica Liliana Sampaio Costa Mendes, hepatologista do Hospital Sírio-Libanês, em Brasília, e membro da Sociedade Brasileira de Hepatologia (SBH).

A médica conta que a OMS trabalha em um plano que busca eliminar a hepatite C em 10 anos e tratar 80% dos doentes. “Para isso, eles pretendem ampliar diagnósticos e tratamentos, entre outras medidas, tudo até 2030”, diz. A agência estima que, em 2015, havia 71 milhões de pessoas com hepatite C no mundo. Desse grupo, 75% eram de países de renda média e baixa e somente 13% tiveram acesso ao tratamento.

O Brasil tem registrado quedas nos casos da doença. De acordo com o boletim epidemiológico sobre hepatites virais, divulgado pelo Ministério da Saúde, de 2018 para 2019, o número de infectados no país caiu de 27.773 para 22.747. As mortes provocadas pela enfermidade também baixaram no período, de 1.720 para 1.574. “Hoje, temos medicamentos para hepatite C fornecidos gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS). São drogas muito eficazes e seguras, sem riscos de efeitos colaterais. Essa é uma medida que faz diferença no enfrentamento da doença”, avalia a hepatologista. (VS)