Correio braziliense, n. 20956, 08/10/2020. Ciência, p. 13

 

Nobel para as afiadas editoras do genoma

Palome Oliveto

08/10/2020

 

 

Elas criaram a tesoura que edita a vida com precisão cirúrgica. Com o desenvolvimento da ferramenta CRISPR-Cas9, a francesa Emmanuelle Charpentier, 51 anos, pesquisadora do Instituto Max Planck, e a norte-americana Jennifer A. Doudna, 56, da Universidade da Califórnia em Bekerley, possibilitaram a alteração do DNA de seres humanos, animais, plantas e micro-organismos, sem o risco de, ao tentar consertar um erro, acabar criando outro defeito. Ontem, foram laureadas com o Nobel de Química, que, pela primeira vez, premia uma dupla 100% feminina.

De tratamento para o câncer a melhoramento genético na agricultura, a tecnologia desenvolvida por elas revolucionou diversos campos científicos.  Alterar o DNA já era uma realidade, mas faltava um mecanismo que permitisse fazer isso de forma precisa. As tesouras afiadas de Charpentier e Doudna resolveram a questão e, hoje, pesquisadores do mundo todo utilizam o CRISPR-Cas9 em seus laboratórios.

“Há um poder enorme nessa ferramenta genética que afeta a todos nós. Ela não só revolucionou a ciência básica, mas também resultou em inovações agrícolas e levará a novos tratamentos médicos inovadores”, disse Claes Gustafsson, presidente do Comitê Nobel de Química, ao justificar a premiação. Ele ressaltou que modificar genes costumava ser um processo demorado, difícil e, às vezes, impossível. “Usando a tesoura genética CRISPR-Cas9, agora é possível mudar o código de vida ao longo de algumas semanas.”

A descoberta ocorreu de maneira inesperada. Em 2011, Charpentier e Doudna pesquisavam o sistema imunológico da bactéria Streptococcus pyogenes, pensando em desenvolver um antibiótico, quando se deparam com uma molécula então desconhecida: a tracrRNA. Ao estudá-la, elas perceberam estar diante de uma ferramenta molecular capaz de fazer incisões precisas no material genético, possibilitando mudar facilmente e com segurança o código da vida.

A descoberta foi publicada na revista Science, em 2012, e gerou grande alvoroço, levantando, inclusive, questionamentos éticos. A dupla, porém, sempre defendeu o uso da tecnologia para o bem da humanidade, especialmente na busca por tratamentos para doenças desafiadoras. Atualmente, na área da medicina, inúmeras pesquisas utilizam as tesouras de Charpentier e Doudna para o desenvolvimento de terapias gênicas oncológicas, voltadas a enfermidades hereditárias e raras. A tecnologia também está sendo aplicada em estudos de diagnóstico e medicamentos para a covid-19.

“A história delas foi um exemplo perfeito de como a ciência básica movida pela curiosidade acaba levando a revoluções na tecnologia e na medicina”, comenta Ailong Ke, professor de química na Universidade de Cornell e especialista em CRISPR. “O trabalho se destacou em originalidade, qualidade e impacto. Elas foram os primeiros a reconstituir o CRISPR-Cas9, a demonstrar a versatilidade e a apontar as aplicações potenciais na edição de genoma”, completa Ailong Ke,  que fez as pesquisas de pós-doutorado no laboratório de Doudna.

Históricas

O anúncio da premiação de uma equipe 100% composta por mulheres veio no dia seguinte ao Nobel de Física, que reconheceu o trabalho da astrofísica Andrea Ghez pela descoberta de um buraco negro supermassivo no centro da Via Láctea. A francesa e a norte-americana são, respectivamente, a sexta e a sétima mulheres laureadas com o Nobel de Química, vencidos anteriormente pela polonesa Marie Curie (1911), a britânica Dorothy Crowfoot Hodgkin (1964), pela norte-americana Barbara McClintock (1983), pela israelense Ada E. Yonath (2009) e pela norte-americana Frances H. Arnold (2018).

“Esse é um momento histórico na história do Prêmio Nobel porque nunca foi atribuído antes a duas mulheres (ao mesmo tempo) em Química, Física ou Medicina”, afirmou, na cerimônia do anúncio, feita on-line, Pernilla Wittung Stafsheden, integrante da Real Academia Sueca de Ciências.

“Desejo que o fato de Jennifer Doudna e eu termos sido premiadas hoje (ontem) represente uma mensagem muito forte para as jovens que desenvolvem carreiras científicas”, disse Charpentier em uma coletiva de imprensa também on-line. Jennifer Dodna destacou à agência France-Presse (AFP) de notícias que, para muitas mulheres, “independentemente do que façam, seu trabalho nunca será considerado como seria se fossem homens”.

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Entrevista - Elisa Souza Orth

08/10/2020

 

 

Vitrine para as próximas gerações

Reconhecida em 2016 pelo Prêmio L’Oreal-Unesco para Mulheres na Ciência pelo trabalho que desenvolve como jovem cientista, Elisa Souza Orth, 36 anos, conheceu, na ocasião, as duas laureadas ontem, no Nobel de Química. “Elas são incríveis, fantásticas”, diz. Professora e pesquisadora da Universidade Federal do Paraná e uma das coordenadoras do Núcleo Mulher da Sociedade Brasileira de Química, a química espera que a Real Academia Sueca abandone a tradição de não premiar mulheres. “A gente precisa ter essas mulheres em posição de destaque porque elas vão ser vitrine para as futuras gerações, vão ser vitrine para a nossa sociedade.” (PO)

Como a pesquisa premiada tem revolucionado a ciência? Além da medicina, quais  outras áreas são beneficiadas pela edição genética?

Essa técnica de tesoura genética é muito interessante porque permite fazer modificações precisas no DNA. Já existem técnicas para a terapia genética, ou seja, mudar nosso DNA para eliminar doenças. Mas nunca se conseguiu fazer de forma tão precisa. Idealmente, para doenças genéticas, como câncer, poderíamos reparar o defeito no DNA. Mas o problema é a falta de técnicas precisas: nem sempre conseguimos chegar à região do DNA com defeito, às vezes, acaba-se chegando à sadia, o que cria um defeito, uma nova doença. Essa é a inovação da técnica. Elas conseguiram criar uma tesoura genética que permite ir exatamente onde tem o defeito no DNA, cortar e reparar aquele defeito. A técnica está sendo usada na fibrose cística e no tratamento de câncer, por exemplo.

O Nobel não tem tradição de premiar mulheres. A senhora acha que a escolha de três (incluindo Andrea Ghez, em física, na segunda-feira) sinaliza para uma mudança de postura da Academia?

Realmente, o Nobel não tem tradição de premiar mulheres, muito menos na área de exatas. Atualmente, no Prêmio de Química, temos 3,76% de mulheres laureadas. Isso significa sete em 186 laureados. Com certeza, é um grande avanço ter recebido essa notícia. Nos dá muita esperança. Primeiro, porque elas merecem, e, segundo, porque a gente precisa dar cada vez mais esse reconhecimento às mulheres. Tem muita mulher fazendo trabalhos fantásticos. Sinaliza, sim, para uma mudança de postura, as pessoas estão percebendo a importância de olhar para todo mundo.  Não é questão de privilegiar, é dar o conhecimento que elas merecem. A gente precisa ter essas mulheres em posição de destaque porque elas vão ser vitrine para as futuras gerações, vão ser vitrine para nossa sociedade.

Qual o cenário  da mulher na ciência no Brasil?

Pelo menos na área de química, podemos dizer que temos muitas cientistas. Saiu um estudo da Elsevier mostrando que 40% dos cientistas no Brasil são mulheres, um número muito alto comparado aos de outros países. Recentemente, participei de um trabalho em que a gente levantou números na área de química. Percebemos que aquilo de dizer que mulheres não gostam de exatas é uma lenda. Mostramos que, na pós-graduação, 52% dos estudantes são mulheres. O que acontece é que, quando vai subindo na carreira, essa porcentagem vai diminuindo. Quando chega a ocupar um cargo na universidade, cai para 40%; publicar artigo científico, cai para 20%; ter representantes em entidades, como sociedades científicas, Capes e CNPq, temos um cenário assustador. A Academia Brasileira de Ciências e o CNPq nunca tiveram uma mulher presidente.

Então, ainda há muito preconceito no meio?

Tem muito preconceito. A gente vê histórias horrorosas de pessoas que sofrem assédio. Ainda hoje encontramos situações desse tipo, de alunas relatando assédio. Um mecanismo que as sociedades científicas estão desenvolvendo são os grupos de estudo para discutir essas questões de paridade de gênero. Criamos o Núcleo Mulher na Sociedade Brasileira de Química justamente para monitorar ações, como indicar mulheres para a diretoria e colocar mulheres palestrantes.