O globo, n. 31819, 18/09/2020. País, p. 6

 

Parentes da ex de Bolsonaro fizeram 4 mil saques de R$ 500

Juliana Dal Piva

Pedro Capetti

18/09/2020

 

 

Grupo é investigado por 'rachadinha' no antigo gabinete de Flávio; retiradas eram frequentes após as datas de pagamento

 Documentos da quebra de sigilos bancários de oito familiares de Ana Cristina Valle, ex-mulher do presidente Jair Bolsonaro, obtidos pelo GLOBO, mostram que esse núcleo da investigação da “rachadinha” no gabinete do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) tinha o hábito de sacar várias vezes R$ 500 das suas respectivas contas, perto das datas de pagamento. Das 9.859 operações de saque feitas entre 2007 e 2018, 4.294 foram nesse mesmo valor —o equivalente a 44% de todas as operações feitas. Esses saques somaram um total de R$ 2,1 milhões.

Nas investigações, o Ministério Público do Rio (MP-RJ) apresenta dez integrantes da família como um dos grupos da “organização criminosa” e aponta que os investigados sacaram, em média, 83% dos salários recebidos da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj). Em Resende, no Sul do Estado do Rio, os parentes de Ana Cristina levam uma vida modesta.

Segundo o MP-RJ, os familiares da ex-madrasta de Flávio “sacavam quase a integralidade dos salários recebidos na Alerj para repassar os valores em espécie a outros integrantes da organização criminosa”. Ao analisar os dados bancários da família Siqueira, o Ministério Público verificou que, dos R$ 4,8 milhões pagos em salário, R$ 4 milhões foram retirados em espécie.

O valor não mudou ao longo do período de 11 anos apurado pelo MP-RJ. Muitas vezes, familiares mantinham o hábito de fazer a mesma quantidade de saques, nos mesmos valores e mesmos dias. Os saques de R$ 500 representam um volume dez vezes superior ao segundo valor mais frequente, o saque de R$ 100, por exemplo, que está presente em 443 transações.

No último dia 31, o Grupo de Atuação Especializada no Combate à Corrupção (Gaecc) concluiu as investigações no procedimento que apura a existência de “rachadinha” no antigo gabinete de

Flávio na Alerj. Os autos foram submetidos para “tomada de providências” do procurador-geral de Justiça do Rio, Eduardo Gussem, e para o subprocurador-geral de Justiça de Assuntos Criminais e Direitos Humanos, Ricardo Ribeiro Martins.

Em 354 oportunidades, ao menos dois integrantes da família de Ana Cristina foram ao banco no mesmo dia e realizaram a mesma quantidade de saques, no mesmo valor. Em apenas três vezes, o valor da operação não foi de R$ 500.

Os extratos bancários mostram que as operações de saques eram mais comuns na primeira quinzena dos meses, quando parte dos integrantes recebia o salários das funções que estavam ocupando. Dos quase dez mil saques analisados, 60% ocorreram na primeira metade do mês. Já com as operações fracionadas de R$ 500, 70% ocorreram durante os primeiros 15 dias.

Há ocasiões em que mais da metade do núcleo investigado esteve no banco para realizar saques no mesmo valor, no mesmo dia e com a mesma frequência. No dia 10 de abril de 2008, por exemplo, Ana Maria de Siqueira Hudson, Fátima Regina Dias Resende, Francisco Siqueira Guimarães Diniz, Juliana Siqueira Guimarães Vargas, Maria José de Siqueira e Silva e Marina Siqueira Guimarães Diniz fizeram, da mesma forma, dois saques na quantia de R$ 500.

Uma das funcionárias mais antigas da família, a fisiculturista Andrea Siqueira Vale nunca abandonou o hábito de fazer saques em espécie, na mesma quantia e em diversas operações no mesmo dia. Das 1.428 retiradas feitas entre 2007 e 2018, 83,5% (1193) foram no valor de R$ 500. Durante todo o período analisado, Fátima Regina Dias, dona de um restaurante em Resende, fez 1.326 saques. Destes, 89% foram no valor de R$ 500.

PADRÃO MUDA APÓS SAÍDA

O cruzamento das nomeações e exonerações para os gabinetes sugere ainda que o padrão de saques de R$ 500 cessava após a exoneração dessas pessoas. A prima de Ana Cristina, a bancária Juliana Siqueira Guimarães Vargas, empregada no gabinete de Flávio entre 2003 e 2011, manteve o hábito de sacar essa quantia todos os meses, em diversas operações, somente no período em que esteve empregada no gabinete do então deputado. Dos 355 saques que fez de R$ 500, 94% (336) foram feitos no período em que estava empregada. Após ser exonerada, foram apenas 19 saques nessa quantia. Juliana chegou a demorar dois anos para sacar esse valor outra vez.

Situação similar foi registrada nas contas da dona de casa Marina Siqueira Guimarães Diniz, lotada no gabinete da Alerj entre 2003 e 2013. Das 191 retiradas que fez, 189 foram no período em que esteve nos quadros de comissionados, no valor de R$ 500. Após a saída, apenas dois saques neste valor foram registrados na conta, em 2015 e 2016. Em outros casos, como de Fátima Regina Dias e de Ana Maria Siqueira Hudson, as contas bancárias ficam praticamente sem movimentação após a exoneração do cargo.

Procurado pelo GLOBO, o advogado Magno Cardoso, que defende a família Siqueira, disse que não iria se pronunciar.