Título: Da brisa suave ao mar agitado
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 28/02/2013, Mundo, p. 16

Na última audiência geral, papa Bento XVI admite que enfrentou dificuldades, enquanto "o Senhor parecia dormir", e nega abandono da cruz

“Eu me sinto como São Pedro na barca sobre o Mar da Galileia: o Senhor nos deu muitos dias de sol e de brisa suave, dias nos quais a pesca foi abundante; houve momentos em que o mar parecia agitado, os ventos sopravam contra nós e o Senhor parecia dormir.” Diante de 150 mil fiéis, o papa alemão Bento XVI — em sua última audiência geral — adotou a passagem bíblica para admitir que enfrentou dificuldades intensas nos oito anos à frente da Igreja Católica. Os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas citam o instante em que os apóstolos temiam morrer durante uma tempestade, dentro do barco de Pedro, enquanto Jesus Cristo dormia. “Eu sempre soube que o Senhor está na barca, que a barca da Igreja não é minha, não é nossa, mas Dele — e que Ele não a deixaria afundar”, declarou Bento XVI, que entregará o cargo de pontífice às 12h55 de hoje (hora de Brasília).

Em um discurso carregado de emoção e de nostalgia, o papa mais uma vez abordou os motivos da renúncia — a primeira em 600 anos. “Nos últimos meses, senti que minha força tem diminuído, e pedi a Deus, com insistência e em oração, que me iluminasse com sua luz, para fazer com que eu tomasse a decisão certa”, afirmou. “Eu tomei esse passo com plena consciência de sua gravidade e também de sua novidade, mas com uma profunda paz de espírito.” De acordo com Bento XVI, “amar a Igreja também significa ter a coragem de fazer escolhas difíceis”. “Eu não abandono a cruz, mas permaneço, de maneira nova, perto do Senhor crucificado. Já não exerço o poder do cargo pelo governo da Igreja, mas, no serviço da oração, eu permaneço, por assim dizer, dentro dos limites de São Pedro.”

Antes do pronunciamento histórico, Bento XVI fez questão de estar mais perto dos fiéis. O papamóvel surgiu às 6h39 (10h39 em Brasília) e fez um longo percurso na Praça de São Pedro. “Longa vida ao papa!”, gritava a multidão. Ao fim da audiência geral, até mesmo os cardeais se uniram aos peregrinos. “Viva o papa”, vários deles gritaram, segundo a agência France-Presse.

O vaticanista italiano Alberto Melloni, historiador da Universidade de Modena/Reggio e autor de Como se elege um papa, disse ao Correio ter ficado impressionado com o fato de Bento XVI parecer aliviado e angustiado, ao mesmo tempo. “Ele sabe que sua decisão expõe os seus sucessores a uma nova situação: a partir de agora, um pontífice poderá renunciar ou ser forçado a fazê-lo. Ao mesmo tempo, Bento XVI completou a renovação — defendida pelo Concílio Vaticano II — do ministério Petrino, tornando-o mais episcopal, seja na doutrina ou na prática”, explicou. Melloni destaca o fato de Joseph Ratzinger (nome de batismo do papa) se abster de dar indicações para o conclave, a eleição do próximo papa. “Os cardeais têm que ser livres e informados da situação da Igreja”, comentou.

Por sua vez, o padre jesuíta Josef Fessio, ex-aluno de doutorado de Bento XVI na década de 1970, afirma que Ratzinger colocou Cristo em primeiro lugar e expressou amor por toda a Igreja. “Ele disse que não está abandonando a cruz, uma referência às dificuldades do cargo. Também usou uma bela imagem — e ele sempre teve o dom de utilizar e interpretar metáforas —, ao dizer que permanecerá ‘a serviço da Igreja, dentro dos limites de São Pedro’”, disse. Para Vincent Lapomarda, professor de teologia no College of the Holy Cross (em Massachusetts), Bento XVI reviveu ontem os oito anos de pontificado. “O que ele tem em mente é a referência bíblica de um alerta do Senhor: se abandonarmos a nossa cruz e não seguirmos Deus, não seremos dignos do reino dos céus. Enquanto temos dias felizes, também vivemos num vale de lágrimas”, disse.

Bento XVI admitiu o preço do papado: o fim da privacidade. “Eu não retorno a uma vida privada, de viagens, de encontros, de recepções e de conferências”, declarou. O último compromisso formal aconteceu hoje. Depois da audiência, ele se reuniu com capitães-regentes da República de San Marino; com o presidente da Eslováquia, Ivan Gasparovic; e com o ministro-presidente da Baviera, Horst Seehofer. Às 17h15 de hoje (13h15 em Brasília), Ratzinger embarcará para a residência de verão de Castel Gandolfo, 25km a sudoeste de Roma, antes de se mudar definitivamente para o convento de clausura de Mater Ecclesiae, nos jardins do Vaticano.

Trechos “Eu me sinto como São Pedro na barca sobre o Mar da Galileia: o Senhor nos deu muitos dias de sol e de brisa suave, dias nos quais a pesca foi abundante; houve momentos em que o mar parecia agitado, os ventos sopravam contra nós — como tem sido em toda a história da Igreja — e o Senhor parecia dormir”

“Experimentar a Igreja dessa maneira e quase ser capaz de tocar com as mãos o poder de sua verdade e seu amor é uma fonte de alegria, em uma época em que muitos falam de seu declínio”

“Nos últimos meses, eu senti que minha força tem diminuído”

“Eu tomei esse passo com plena consciência de sua gravidade e também de sua novidade, mas com uma profunda paz de espírito. Amar a Igreja também significa ter a coragem de fazer escolhas difíceis, de provação, tendo sempre diante de si o bem da Igreja e não o seu próprio bem”

“Eu não abandono a cruz, mas permaneço, de maneira nova, perto do Senhor crucificado”

GASTOS POLÊMICOS O último compromisso público do papa Bento XVI não esteve livre da polêmica, que também marcou todo o seu pontificado. “Somente hoje gastamos 500 mil euros (cerca de R$ 1,3 milhão) na organização da cidade para o evento da última audiência oficial de Bento XVI. E todo o peso fica nas nossas costas”, reclamou ontem o prefeito de Roma, Gianni Alemanno, que compareceu à Praça de São Pedro, se reuniu com o papa e o presenteou com um rosário. Durante o evento, Alemanno tentou pôr panos quentes às declarações: “É um dia emocional. Em primeiro lugar, sentimos consternação e, agora, temos esperança pelo futuro. Estamos de olho em nosso novo papa, mas sentiremos saudades do papa Ratzinger, porque ele foi um grande guia, um grande bispo de Roma”, admitiu.

O vaticanista italiano Alberto Melloni, autor de Como se elege um papa, lamentou a declaração de Alemanno sobre os gastos com a audiência geral. “Foi uma frase estúpida e duvido que ele tenha dito isso. Roma se enriqueceu por causa do turismo católico”, lembrou. Segundo a rede de tevê ABC News, o anúncio da renúncia do papa levou a um aumento nas reservas de hotéis na capital italiana. O site Expedia.co.uk, por exemplo, reportou 35% mais reservas — o aquecimento no turismo teve início 24 horas depois do comunicado histórico do Vaticano, em 11 de fevereiro. Os alemães, os espanhóis e os franceses foram os principais responsáveis por essa tendência.

Gratidão

Alheio às polêmicas em Roma, um grupo de católicos portugueses confeccionou 400 mil cartazes do papa Bento XVI e pediu aos fiéis que os pendurem nas janelas de suas casas. O material foi distribuído gratuitamente pelo Patriarcado de Lisboa em várias cidades portuguesas. Alguns cartazes mostram o pontífice fazendo uma saudação. Uma legenda afirma “Obrigada, Bento XVI”. Em outros pôsteres, ele surge rezando diante da Nossa Senhora de Fátima, durante a visita de Ratzinger a Portugal, em maio de 2010.

Eu acho

“Foi um discurso típico de Joseph Ratzinger: sincero de todo o coração, comovente, repleto de gratidão. De certa forma, é um bonito resumo de seu pontificado. Eu me recordei dos tempos de quando ele dirigiu nossos seminários de graduação, em Regensburg (Alemanha). Havia apresentações e discussões por uma ou duas horas, e ele escutava tudo calmamente. Ao final, Ratzinger resumia o seminário inteiro apenas com poucas frases alemãs longas e elegantemente construídas.”

» Josef Fessio, padre jesuíta norte-americano e ex-aluno de doutorado de Bento XVI