O globo, n. 31814, 13/09/2020. Sociedade, p. 11

 

Por dentro do bloco N

Ana Lucia Azevedo

13/09/2020

 

 

Unindo testes e estudos, centro da UFRJ e referência na pesquisa da Covid-19

 Todos os dias, uma fila solitária se forma no deserto em que se transformou a Ilha do Fundão. Nela estão profissionais de saúde e de segurança que trazem a apreensão estampada no rosto. Eles esperam ser testados no Centro de Triagem e Diagnóstico (CTD) para a Covid-19 da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Apelidado de Bloco N pela área onde foi alocado, é um dos mais importantes núcleos de testagem do coronavírus no Brasil. E, em breve, dará origem a um centro de combate a pandemias.

Em funcionamento desde 16 de março, o CTD, em parceria como Laboratório de Virologia Molecular do Instituto de Biologia, tem antecipado o futuro. Seus estudos sobre contágio, imunidade, reinfecção e persistência do vírus podem ajudara orientar a retomada da economia, a volta às aulas e atividades sociais. Faz isso porque testa em grande escala com RT-PCR, o padrão ouro de testagem do coronavírus, e analisa os dados coma experiência de alguns dos mais respeitados cientistas do país. Até 4 de setembro, foram realizados 11.837 atendimentos.

—É uma experiência inédita de integração entre ciência básica e aplicada—destaca Terezinha Castiñeiras, coordenadora do CT Deche fedo Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicinada UFRJ .— Geramos conhecimento, ensinamos e atendemos à sociedade no momento em que ela mais precisa.

‘ÉRAMOS SEIS’

O embrião do CTD surgiu em fevereiro, antes do anúncio do primeiro caso de Covid-19 no Brasil. De início, atenderia só o pessoal da UFRJ, mas em menos de um mês se abriu aos profissionais de saúde e, depois, aos da segurança de toda a rede pública do Rio — duas categorias profissionais muito expostas à pandemia.

— De início, éramos seis, noite e dia coletando swabs [cotonetes estéreis]— conta Terezinha Castiñeiras. Mas foram chegando colegas médicos, alunos, até professores de outras áreas. Um, da engenharia, queria ajudar de toda a forma e veio organizar a fila. Hoje, cerca de 40 pessoas trabalham no Bloco N, prédio de arquitetura modernista, arejado e de corredores largos, que se mostrou perfeito para trabalhar com um vírus altamente contagioso. Também na linha de frente do CTD desde fevereiro, Rafael Galliez, professor de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da UFRJ, diz que em meados de março eram 50 atendimentos por dia. Em abril, já eram 600.

—É uma enormidade para um processo demorado e que abrange bem mais que somente acoleta de swab em nariz e garganta para o RT-PCR —afirma Galliez. Atualmente, entre 80 a 100 pessoas são testada sacada dia. Os testes são processados em trabalho ininterrupto, 24h por dia, no Laboratório de Virologia Molecular, coordenado por Amílcar Tanuri e Orlando Ferreira. Embora menor, a fila não acabou. Às 8h já há gente na porta. As pessoas são recebidas por estudantes treinados e simpáticos. Mas, por trás das máscaras, quase nenhum dos testados sorri. Há palestra de acolhimento com informações sobre a doença e o teste, entrevista detalhada, coleta de sangue.

Na semana que passou, o centro participava também da validação de dois novos testes de diagnóstico com antígenos. Um deles, com um swab mais fino e menos desagradável, dá resultado em poucos minutos, tempo precioso para reduzir a ansiedade de quem é testado. Uma sala de aula em que se veem jalecos azuis arrumados sobre cada carteira foi transformada em área para guarda de objetos pessoais e troca de equipamentos de segurança. Outra, em posto de atendimento para pessoas que eventualmente passem mal. Seja por medo do teste ou em decorrência da Covid-19. Tudo acontece com cuidados máximos de distanciamento. As pessoas entram separadas, sentam-se distantes umas das outras em longos corredores, para uma manhã ou tarde de atendimento.

—Mesmo com toda a exposição, treinamos tanto nosso pessoal, que só tivemos três positivos, dois deles provavelmente contaminados fora daqui —diz Terezinha.

UM NOVO CENTRO

O Bloco N foi escolhido porque abrigava somente aulas, que foram suspensas. Mas elas retornarão e, com a perspectiva da breve criação de um novo centro, a equipe já se prepara para mudar de endereço, possivelmente na Fundação BioRio, também no Fundão. Na nova sede, o CTD permanecerá para além do coronavírus. Se transformará no Centro de Resposta Rápida de Emergências Infecciosas da UFRJ, cuja missão será identificar e combater doenças emergentes antes que elas se espalhem. Justamente para evitar que novas pandemias voltem a acontecer.

— Num país populoso como o Brasil e com potenciais fontes de novas doenças, como a Amazônia desmatada, um centro assim é fundamental —diz Castiñeiras. — Se havia dúvidas, a pandemia deixou essa necessidade evidente.

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Coronavírus pode persistir por mais de um mês, diz estudo

13/09/2020

 

 

Dados da UFRJ indicam que 20% dos infectados ainda contagiam após 30 dias 

 A Organização Mundial de Saúde (OMS) e o Ministério da Saúde consideram 14 dias o tempo que uma pessoa infectada pelo coronavírus é contagiosa, mas recentemente este período considerado crítico foi encurtado para 10 dias. Mas dados do CTD da UFRJ revelam que cerca de 60% das pessoas infectadas continuam positivas e potencialmente contagiosas 14 dias após o surgimento dos sintomas. E 20% por mais de um mês.

Fez parte do estudo do grupo a descoberta do mais longo caso de persistência já documentado no mundo, o de uma mulher que passou 152 dias infectada pelo coronavírus. Outros casos de infecção prolongada, alguns por mais de 100 dias, também permanecem em investigação. Se imaginava que, após cerca de 14 dias, pessoas assintomáticas positivas deixariam de ser contagiosas porque há dificuldade de replicar vírus extraídos de amostras delas em laboratório. Mas os cientistas da UFRJ argumentam que isso ocorre devido a dificuldades inerentes ao cultivo do coronavírus e não ao fato de ele não se multiplicar.

— A segurança dos 14 dias é uma fantasia —diz Terezinha Castiñeiras, que estuda a persistência em colaboração com Luciana Costa, do Instituto de Microbiologia Paulo de Góes.

O estudo de casos de persistência mostra que a carga viral em pessoas ainda positivas entre 14 e 21 dias frequentemente permanece elevada, indicador de seu potencial de transmissão. Por isso, Terezinha e sua equipe defendem que 21 dias é o tempo mais adequado para uma pessoa se manter isolada. No caso dos profissionais de saúde, a volta ao trabalho só deveria acontecer após negativa no exame de PCR.

— Chama a atenção o fato de haver assintomáticos positivos por mais de um mês — salienta o professor de infectologia Rafael Galliez, que realiza com Isabela Carvalho e Debora Faffe um estudo observacional clínico-epidemiológico dos profissionais de saúde e segurança em acompanhamento no CTD.

Os profissionais de saúde infectados por mais tempo trazem um dilema. Se mantidos por muito tempo afastados, fazem imensa falta ao já carente setor de saúde. Porém, se voltam ao trabalho, expõem os pacientes ao risco de contrair a Covid-19. Terezinha Castiñeiras diz que apressão de gestores de saúde muitas vezes é grande:

—Já houve caso de pedirem para não revelarmos o resultado do exame a profissionais. Consideramos um absurdo. Os cientistas trabalham coma hipótese de reinfecção para alguns casos misteriosos. São oito pessoas que contraíram o coronavírus entre março e abril e foram acompanhadas até ter um resultado negativo. Após alguns meses, elas voltaram ao CTD: além de sintomáticos, tinham quadros clínicos diferentes. A resposta para os casos está no sequenciamento genético de vírus coletados na primeira ena segunda infecção. Os cientistasvão investigar ses e trata de linhagens diferentes do Sars-CoV-2, o que comprovaria uma reinfecção.

— Acreditamos que a reinfecção pode sim ocorrer. Ela deve ser menos comum que a persistência, mas é possível —diz Terezinha Castiñeiras.