O globo, n. 31815, 14/09/2020. Rio, p. 9

 

Tentáculos da corrupção

Carolina Heringer

14/09/2020

 

 

MP suspeita que mais de 20 setores da prefeitura participavam de esquema

 O Ministério Público estadual do Rio suspeita que o suposto esquema de corrupção na prefeitura do Rio, pelo qual são investigados o empresário Rafael Alves e o prefeito Marcelo Crivella, tenha se expandido para muito além da Riotur, enraizando-se em várias esferas da administração municipal. Análises de trocas de mensagens, contratos firmados e pagamentos realizados apontam, para o MP, a existência do esquema em pelo menos 20 órgãos da prefeitura, incluindo o gabinete de Crivella e secretarias como as de Saúde e Educação. Os dados constam na representação do MP por busca e apreensão em endereços de Crivella. Os mandados foram cumpridos na última quinta-feira.

Segundo informações do documento, ao qual O GLOBO teve acesso, o esquema começou a ser articulado por Rafael ainda na campanha de Crivella. O pactuado, apontam as investigações, era o pagamento antecipado de propina durante a corrida eleitoral, em troca de vantagens futuras no governo do bispo licenciado. As promessas transitavam por obtenção de contratos com a prefeitura, prioridade nos pagamentos e nomeação para cargos.

MENSAGENS DE CELULAR

Trocas de mensagens em celulares de Rafael Alves, apreendidos em março deste ano, expõem como funcionava o esquema. O empresário, apontado como um dos principais articuladores de Crivella, é irmão de Marcelo Alves, ex-presidente da Riotur.

Segundo análise do MP, ao menos cinco empresas com as quais Rafael mantinha relação e contato com representantes não só tinham contratos com a administração municipal, como conseguiam prioridade no pagamento dos valores devidos pela prefeitura. Os procuradores citam como exemplo uma empresa de comunicação contratada pelo gabinete do prefeito, que recebeu R$ 32 milhões entre 2017 e 2019.

O MP aponta que o valor integral dos serviços foi pago, ao contrário de “centenas de outros contratos ligados a atividades essenciais, como saúde e educação”. Rafael, apesar de não ter nenhum cargo no Executivo municipal, chegava a avisar representantes das empresas sobre as datas em que a prefeitura faria pagamentos pendentes. Entre novembro de 2017 ema iode 2018, as cinco empresas receberam pagamento demais de 20 órgãos da prefeitura do Rio. Para os promotores, a extensão do esquema “revela o inexorável envolvimento da mais alta autoridade da administração municipal na organização criminosa”.

Três dessas empresas pertencem a João Alberto Felippo Barreto, também dono da Locanty Serviços. Segundo delação do doleiro Sérgio Mizrahy, João trabalhava em conjunto com Rafael Alves.

Os procuradores citam a Rioluz como um dos principais órgãos municipais sob influência da organização. Em trocas de mensagens em 2017 e 2018, Rafael e Mauro Macedo, primo de Edir Macedo e campanha de Crivella, conversam sobre contratos da empresa pública, pagamentos a serem feitos e até mesmo a frustração de um empresário que teve como promessa a indicação do presidente do órgão, o que não ocorreu. As investigações também apontam indícios da manipulação de uma licitação na Secretaria de Ordem Pública (Seop), cujo objeto seria a contratação de reboques.

Outras conversas, para os investigadores, não deixam dúvidas da influência de Rafael no Executivo municipal. Em mensagem para Crivella, o empresário afirma que deixou para o prefeito uma indicação para a presidência da Previ-Rio. Em outra ocasião, em diálogo com o ex-senador Eduardo Lopes, Alves é explícito ao afirmar que conseguiu exonerar o “sub da Barra” e afirma que está tentando indicar um nome. Para os investigadores, ele se refere ao cargo de superintendente da Barra da Tijuca, atual nomenclatura das subprefeituras.

PRIMEIRA INDICAÇÃO

O próprio ex-presidente da Riotur, Marcelo Alves, foi colocado no cargo pelo irmão, Rafael. Crivella admite a influência do empresário em mensagem enviada a ele às vésperas de assumira prefeitura. “Lembra que lá atrás você disse que queria que seu irmão fosse presidente da Riotur. Foi a primeira indicação que fiz”, respondeu o prefeito a Alves.

Os procuradores afirmam que há indícios de que o grupo tenha cometido corrupção passiva, peculato, fraudes licitatórias,lavagem de dinheiro e crimes de responsabilidade. As investigações estão em andamento. A assessoria da prefeitura do Rio não emitiu novo posicionamento, limitando-se a enviar vídeos do prefeito comentando as investigações, com seus textos decupados. Nas gravações, Crivella afirma que é “acusado de tudo”, mas não é réu de nada. O prefeito ainda é investigado pelos procuradores e Polícia Civil, e pode virar réu na ação referente a essa apuração. Ontem, o Tribunal de Justiça derrubou o segredo de Justiça da investigação contra Crivella, como informou Ancelmo Gois.

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Celular escondido sob pilha de roupas foi prova principal

14/09/2020

 

 

Telefones apreendidos revelaram proximidade entre O empresário Rafael Alves e Crivella; ambos chegavam a falar em códigos

 Foi o aparelho, inclusive, que tocou durante a presença dos investigadores na casa. Do outro lado da linha, o prefeito Marcelo Crivella buscava informações sobre a operação que ocorria. Foi atendido por um delegado e, ao notar que não falava com Rafael, desligou.

No total, foram apreendidos quatro celulares de Rafael. Apenas um deles foi entregue espontaneamente pelo empresário. Além daquele escondido sob as roupas, outros dois estavam dentro de um carro estacionado próximo à casa. No veículo, havia ainda joias, relógios e uma bolsa com R$ 50 mil. Para o MP, esse poderia ser “uma espécie de veículo de fuga”, ou seja, um carro pronto para permitir que Rafael fugisse, se necessário. O empresário alegou que tudo dentro do veículo era de Shanna Harrouche Garcia, sua ex-mulher e filha do bicheiro Waldemir Paes Garcia, o Maninho.

A análise dos telefones demonstrou que, entre maio de 2016 e março deste ano, o prefeito e o empresário trocaram 1.949 mensagens, o que acabou por revelar a estreita ligação entre ambos e a extensão do esquema pelo qual são investigados. A comunicação entre os dois muitas vezes era cifrada, dificultando a compreensão de terceiros. Boa parte do conteúdo dos celulares foi apagada, mas os investigadores conseguiram recuperá-la.

Em nota, o advogado de Rafael, João Francisco Neto, disse que o MP interpreta as mensagens de “forma enviesada”, sem se preocupar com os esclarecimentos do cliente, que quer ser ouvido.