Valor econômico, v. 21, n. 5112, 22/10/2020. Política, p. A16

 

Kassio é aprovado por 57 votos a 10, com acenos ao bolsonarismo

Renan Truffi

 Vandson Lima

Cristiano Zaia

22/10/2020

 

 

Novo ministro do STF não soube explicar a função de sua mulher em gabinete de senador

Primeiro indicado do presidente Jair Bolsonaro para compor o Supremo Tribunal Federal (STF), o desembargador Kassio Marques foi aprovado pelo ontem Senado, em votação secreta, por larga margem, com 57 votos favoráveis, 10 contrários e uma abstenção.

Recomendado pelo Centrão, pelo primogênito do presidente, senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), e saudado até por integrantes da oposição, Kassio mostrou-se preocupado em acenar a bandeiras sensíveis ao bolsonarismo. Citou Deus por seis vezes, a Bíblia e evitou temas espinhosos, como os direitos LGBT e questões sobre aborto, durante a sabatina na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), pela qual passou com poucos percalços.

O novo ministro reforçou seu perfil garantista, que pode entrar em choque com operações como a Lava-Jato, afirmando que correções precisam ser feitas se houver ilegalidades nessas investigações. “O que acontece é que se houver determinada conduta, seja de autoridade policial, membros do Ministério Público ou do Judiciário, essas correções podem ser feitas. Ressalvo a competência do Poder Judiciário para promover os ajustes necessários se, pontualmente, houver descumprimento da lei ou da Constituição [em operações]”, defendeu Kassio, agradando ao mesmo tempo bolsonaristas, integrantes do Centrão e do PT, todos, por motivos diversos, em confronto com o grupo ligado ao ex-ministro Sergio Moro.

Kassio defendeu que o garantismo significa garantir a qualquer cidadão o devido processo legal. “O garantismo não é leniência com a corrupção. O garantismo é dar ao cidadão, seja quem for, a garantia de que ele percorrerá o devido processo legal para, ao final, termos um julgamento justo”.

Decisões monocráticas, ponderou Kassio, não são do seu hábito, pois prefere “privilegiar” o pleno das Cortes onde passou. “Socializa o debate e é um aprendizado que tive. Posso me afirmar um juiz que prestigia muito as decisões colegiadas. Não estou dizendo que uma decisão ou outra não possa ser ativista [em caso de necessidade]”, disse.

Kassio rechaçou que sua indicação tenha sido patrocinada pelos padrinhos elencados desde que a escolha se tornou pública - como Flávio, o advogado Frederick Wassef e os partidos do Centrão. “Eu estava numa caminhada desde 2015 para [a indicação ao] STJ [Superior Tribunal de Justiça]. Do meu conhecimento, absolutamente ninguém interferiu na decisão do presidente de me indicar [ao STF]”.

Questionado por Cid Gomes (PDT-CE) se ideologicamente se considera “de direita ou de esquerda”, saiu pela tangente. “A capa da magistratura nos coloca em outra situação, em que temos que manter um distanciamento e sermos cumpridores da lei e da Constituição”. Alvo de 33 representações no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Kassio se defendeu dizendo que se tratavam de atrasos em processos e haviam sido arquivadas.

No único momento de maior dificuldade nas 10 horas de sabatina, Kassio titubeou ao falar sobre sua esposa, Maria do Socorro Mendonça de Carvalho Marques, trabalhar no gabinete do senador Elmano Férrer (Progressistas-PI). Ele não soube explicar com exatidão a função por ela exercida. Maria é assessora parlamentar júnior, com salário de R$ 11,4 mil mensais.

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Uma defesa da ‘autocontenção dos Poderes’

Renan Truffi

Cristiano Zaia

Vandson Lima

22/10/2020

 

 

Novo ministro do STF disse que perfil garantista não se confunde com leniência

Seguem os principais temas tratados na sabatina de Kassio Marques na CCJ:

Independência entre Poderes

“Faço, neste ponto, singelo registro sobre a essencialidade da observância da regra constitucional da separação e autonomia dos três Poderes da República. Penso que os limites constitucionais fixados para o âmbito de atuação dos Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo denotam a própria estrutura do Estado. Vulnerados esses limites em razão de indevida ingerência de um Poder em área de competência estrita de outro Poder, configura-se, a meu sentir, situação de inconstitucionalidade e, consequentemente, a depender do fato concreto, hipótese também de ilegalidade. De fato, acredito que é inerente à fórmula constitucional de organização dos Poderes da República um sistema recíproco e interativo de autocontenção, que deve resultar em equilíbrio,  temperança e harmonia na atuação de cada um desses pilares fundamentais do Estado.. Hoje atravessamos uma fase de reafirmação dos Poderes da República dentro do contexto da organização política e social do Brasil. Penso que se faz necessário o devido respeito à independência dos três Poderes, bem como uma maior interação entre eles, para que se faça a necessária harmonia para uma mais rápida edificação do país dentro dos ditames do Estado democrático de direito.”

Perfil garantista

Kassio rebateu a tese de que, por ter um perfil garantista, poderá ser leniente com a corrupção. “O garantismo é tão somente aquele magistrado que garante o cumprimento das leis e da Constituição. É diferente do originalismo ou do textualismo, que é a que, eventualmente, um ou outro magistrado pode ter mais apego acadêmico. O garantismo não é sinônimo de leniência com o combate à corrupção. O garantismo, em momento algum, significa flexibilização de norma infraconstitucional ou constitucional no combate à corrupção. Absolutamente. O garantismo judicial é tão somente dar ao cidadão brasileiro, seja ele quem for, a garantia de que ele percorrerá o devido processo legal e que lhe será franqueada ampla defesa, para, ao final, termos um julgamento justo, condenando se tiver culpa ou absolvendo se for inocente.”

Operação Lava-Jato

Questionado se apoiava a Operação Lava-Jato, o magistrado saiu pela tangente, mas acrescentou que o Poder Judiciário tem “competência” para promover ajustes em operações. “Não há um brasileiro que não reconheça os méritos de qualquer operação no Brasil. Essas operações são legitimadas porque têm a participação, inicialmente, do Ministério Público, do Poder Judiciário e, depois, da Polícia Judiciária dando cumprimento. Então, não há que se falar de demérito em relação a nenhuma operação que é fruto de uma construção de três pilares. O que acontece, pode acontecer em qualquer operação, em qualquer decisão, em qualquer esfera, é: se houver determinado ato ou conduta, seja da autoridade policial, seja de algum membro do Ministério Público ou de algum membro do Poder Judiciário, essas correções podem ser feitas, nada é imutável. Eu pessoalmente não tenho nada contra nenhuma operação de que eu tenha notícia no Brasil.”

Prisão após segunda instância

Para ele, o Congresso é o foro mais competente para a discussão do tema. Apesar disso, o desembargador defendeu que esse instituto não pode ser aplicado automaticamente. “Essa matéria está devolvida ao Congresso Nacional. Entendo que o foro mais do que competente para traçar essas discussões, para convocar a sociedade e para ouvir os clamores populares é esta Casa. Para não me imiscuir, absolutamente, eu apenas me reporto a uma entrevista que eu proferi quando era vice-presidente do tribunal, em um momento fotográfico - é importante que se diga isso -, em que me indagaram qual era a minha posição em relação ao que já havia decidido o Supremo Tribunal Federal naquele momento, autorizando as prisões em segunda instância. E eu, apenas num comentário numa revista especializada, disse naquele momento que era favorável àquela decisão do Supremo, que iria cumprir a decisão do Supremo, e apenas ponderei que, como a própria Constituição Federal exige que toda decisão seja fundamentada - e isso eventualmente pode servir de inspiração para o que for construído nesta Casa -, essa decisão de determinar o recolhimento ao cárcere não seria um consectário natural.”

Lei contra abuso de autoridade

“[A lei] Foi muito questionada, inclusive dentro do próprio Poder Judiciário, dividia opiniões. Parte do Judiciário entendia que ela seria salutar e bem-vinda no momento em que foi edificada, e outra entendia que seria o tolhimento da liberdade do magistrado em julgar. A mim cabe tão somente agora aguardar a conformação jurisprudencial. Vossa excelência foi exatamente no ponto de que ela não está sendo bem utilizada. Eu não tenho um conhecimento estatístico das razões pelas quais ainda não está sendo utilizada, porque pode ser causa ou efeito. Pode não estar sendo utilizada, por quê? Não estão havendo abusos ou não está sendo utilizada por falta de uma conformação jurisprudencial de um Tribunal Superior, eventualmente o Supremo Tribunal Federal, que dê uma orientação de como ela será aplicada em um ou outro caso concreto.”

Foro privilegiado

“Essa questão já foi decidida pelo Supremo Tribunal Federal, e hoje só são consideradas aquelas hipóteses que já estão regulamentadas de absorção dessa autoridade naquela jurisdição quando esses eventuais atos forem cometidos no exercício do mandato ou em detrimento dele”.

Segurança jurídica

Kassio defendeu que é preciso “harmonizar” as decisões judiciais como forma de garantir segurança jurídica à sociedade, empresários e aos investidores estrangeiros. Segundo ele, o sistema jurídico brasileiro tem “mecanismos” que garantem jurisprudências e o poder vinculativo das decisões. “Investir em um país em que tudo pode ser judicializado e não se sabe ao certo como vão se concluir esses julgamentos é algo que realmente precisa ser harmonizado no nosso país”, disse. “No caso brasileiro, nós estamos vivenciando um momento novo na formatação da uniformização da jurisprudência nacional. Por que digo isso? Porque a segurança jurídica nada mais é do que a harmonização das decisões judiciais.”

Ativismo no Judiciário

“A compreensão do ativismo judicial e da autocontenção varia de país para país. Vamos pegar um país parâmetro do Brasil, que seriam os Estados Unidos. [...] Tratar de ativismo nos Estados Unidos tem uma formatação, tratar de ativismo judicial no Brasil tem outra. Por quê? Porque nos Estados Unidos nós temos uma Constituição viva, só são sete artigos com sete princípios, e impera a partir daí uma construção do ‘common law’. Então o ativismo judicial nos Estados Unidos é uma engrenagem fundamental na construção da jurisprudência. Qual a diferença no caso brasileiro? Nós temos aqui o sistema do ‘civil law’. Nós temos uma Constituição escrita, que não demanda o exercício do ativismo, como se demanda, por exemplo, nos Estados Unidos.”

Conquistas da comunidade LGBT

Kassio evitou ser enfático sobre qual deverá ser sua postura caso se depare com a judicialização de direitos da população LGBT. O desembargador respondeu que as conquistas dos gays devem ser consolidadas na norma jurídica pelo Congresso e que o Judiciário foi “até o limite” neste tema.

Legalização do aborto

“Eu entendo que o Poder Judiciário, muito provavelmente, já exauriu as hipóteses dentro dessa sociedade. O meu lado pessoal eu deixei bem claro na minha apresentação: eu sou um defensor do direito à vida e tenho razões pessoais para isso.”