Valor econômico, v. 21, n. 5112, 22/10/2020. Internacional, p. A19

 

Com “diplomacia da vacina”, China reforça influência

Stephanie Findlay

Stefania Palma

Christian Shepherd

22/10/2020

 

 

País prometeu vacina para todas as regiões mais pobres do mundo, deixando os EUA para trás

A China está prometendo acesso preferencial a suas vacinas anticovid-19 a países da Ásia, África e América Latina, num momento em que Pequim usa a imunização como um novo instrumento para fortalecer seus laços com países negligenciados pelos EUA.

O ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, está liderando o esforço, ao prometer que Malásia, Tailândia, Camboja e Laos estarão entre os que receberão com “prioridade” as vacinas chinesas.

A China deseja ser uma fornecedora mundial de vacinas. Quatro produtos chineses estão atualmente na fase 3 dos testes, o estágio final que visa garantir a segurança e a eficácia antes da aprovação para uso público.

Embora grupos farmacêuticos americanos, como a Johnson & Johnson e a Moderna, também tenham vacinas em estágio avançado de desenvolvimento, os EUA não demonstram interesse em ajudar a distribuí-las no exterior.

“Os EUA cederam terreno para a China em termos de acordos bilaterais em torno da vacina no Sudeste Asiático”, disse Aaron Connelly, do centro de análise e pesquisa Instituto Internacional de Estudos Estratégicos.

Como parte do esforço da China de ofuscar o governo Donald Trump e sua agenda “EUA em 1º”, Wang disse durante uma viagem pela região, na semana passada, que Pequim está pronto para vacinar o Sudeste Asiático.

Wang se reuniu com autoridades indonésias para reafirmar um acordo assinado em agosto entre a empresa chinesa Sinovac e a Bio Farma, farmacêutica estatal do país. Pelo acordo, a Sinovac vai fornecer ao menos 40 milhões de doses de sua vacina CoronaVac, que está na fase 3 dos testes clínicos, até março de 2021. O início da entrega está previsto para o mês que vem.

A Indonésia, com cerca de 350 mil casos, tem o maior número de infecções do Sudeste Asiático.

“Isso poderá dar a Pequim uma alavancagem sobre a Indonésia, se o país ficar dependente demais das vacinas chinesas, ou poderá deixar a Indonésia esperando por mais tempo caso as vacinas chinesas revelem uma baixa imunogenicidade [capacidade de provocar resposta imune]”, disse Connelly.

A China está convencida de que a “diplomacia da vacina” terá sucesso onde a “diplomacia da máscara” fracassou, disse Huang Yanzhong, do centro de pesquisa Conselho sobre Relações Exteriores.

Uma ofensiva anterior da China foi frustrada após países europeus terem recusado máscaras e outros equipamentos de proteção de fabricação chinesa por causa da baixa qualidade. Mas a China “tende a sair a vencedora, em última instância, em termos de aumento de influência durante a corrida mundial pela vacina”, disse Huang.

Na terça-feira, a China contestou a ideia de que estaria usando a “diplomacia da vacina” para reforçar sua influência. Zhao Xing, do Ministério das Relações Exteriores, disse que a meta é “colaborar” para acelerar a entrega a países em desenvolvimento. “É a China sendo uma potência responsável”, disse.

As promessas da China de acesso preferencial foram além da Ásia. Pequim prometeu ajudar a maioria dos países em desenvolvimento, inclusive todo o continente africano. Também ofereceu crédito de US$ 1 bilhão para países latino-americanos e caribenhos, para financiar compras governamentais.

No Brasil, o Estado de São Paulo assinou um acordo que prevê recebimento e produção local de 46 milhões de doses da vacina da Sinovac, na fase 3 dos testes no país.

Pequim, além disso, aderiu ao programa Covax, da Organização Mundial de Saúde (OMS), que tem como objetivo fornecer 2 bilhões de doses até o fim do ano que vem. O governo Trump se recusou a participar do programa.

Especialistas discutem se a China conseguirá superar obstáculos de natureza logística e regulatória para cumprir suas promessas grandiosas. A China não está sozinha como ofertante de vacinas ao mundo em desenvolvimento. A Indonésia também assegurou 100 milhões de doses de vacinas da farmacêutica anglo-sueca AstraZeneca, a serem entregues em 2021.

Mas o forte apoio governamental e a falta de demanda premente no território da China, onde a disseminação do vírus foi quase totalmente contida, dá uma vantagem às fabricantes de vacinas chinesas, dizem analistas.

Sair vitoriosa - ou conquistar um lugar de destaque - na corrida mundial pela vacina representará um grande trunfo para o modelo de desenvolvimento científico da China, que orquestra cuidadosamente a colaboração entre o setor público e a iniciativa privada.

Pequim vê um “momento histórico” para superar uma série de escândalos de vacinas chinesas defeituosas, que comprometeram a confiança no setor, e “capitalizar seu know-how econômico e tecnológico contribuindo para um bem público”, disse Karen Eggleston, da Universidade Stanford.

Autoridades chinesas estimam que a capacidade anual do país para produzir vacinas contra a covid-19 poderá alcançar 1 bilhão de doses no ano que vem.

Três das vacinas que estão na fase 3 de testes - duas desenvolvidas pela estatal Sinopharm e uma pela Sinovac - usam uma forma desativada do vírus para provocar uma reação imune. A quarta candidata, desenvolvida pela CanSino, sediada em Tianjin, juntamente com uma equipe de pesquisa da Academia de Ciências Médicas Militares, usa um vírus atenuado de resfriado comum como mensageiro.

A busca dos chineses por parceiros estrangeiros foi impulsionada, em parte, pela necessidade, uma vez que a falta de casos na China inviabilizou a realização dos testes da fase 3 no país.

A China poderá enfrentar uma reação adversa se houver dúvidas sobre a qualidade de suas vacinas, disse Jannifer Huang Bouey, do centro de estudos Rand Corporation. “Trata-se de um risco que a China está disposta a correr em vista das enormes vantagens - não apenas um discurso mais favorável sobre liderança mundial em saúde como também para abrir novos mercados para a China.

Segundo estimativas da corretora chinesa Essence Securities, se fabricantes de vacinas chinesas captarem 15% do mercado dos países de média e baixa rendas, isso poderá significar vendas de quase 19 bilhões de yuans (US$ 2,8 bilhões).

Na China, as empresas começaram a aumentar a produção e a distribuição de vacinas para centenas de milhares de pessoas, como parte de um polêmico programa de uso emergencial que possibilita sua utilização antes mesmo da conclusão da fase 3 dos testes. Isso deu às empresas chinesas uma vantagem competitiva na ocupação do mercado interno e no desenvolvimento da capacidade de produção.

Essa ofensiva da China não está isenta de reveses. Em Bangladesh, a tentativa da Sinovac de realizar a fase 3 dos testes no país foi posta em dúvida por uma discordância na área de financiamento, após Bangladesh ter dito não estar disposto a arcar com a conta do desenvolvimento da vacina.

Sayedur Rahman, membro do Comitê Nacional de Ética na Pesquisa de Bangladesh, disse que, em troca da fase 3 dos testes, a Sinovac ofereceu 110 mil doses gratuitas e a transferência de algumas tecnologias, o que não foi considerado suficiente para um teste entre mais de 4 mil pessoas, realizado ao custo de cerca de US$ 4 milhões.

“Por que Bangladesh deveria investir dinheiro [em pesquisa de um produto] que ainda não é uma vacina confirmada?”, questionou Rahman.