Valor econômico, v. 21, n. 5111, 21/10/2020. Brasil, p. A6

 

Pandemia reduz tempo de aulas e aumenta desigualdade

Hugo Passarelli

21/10/2020

 

 

Em locais como o Acre, alunos tiveram pouco mais de 1h de aula por dia

Em meio à pandemia da covid-19, jovens do Acre com 6 a 15 anos tiveram apenas uma hora e 17 minutos de aula por dia útil no mês de agosto, menos da metade dos alunos do Distrito Federal, que chegaram a quase três horas de estudo. Já os estudantes de 6 a 15 anos da classe E estudaram, na média brasileira, cerca de duas horas e dois minutos, bem abaixo das pouco mais de 3 horas e 11 minutos dos que pertencem às classes A e B. As conclusões são de estudo divulgado ontem pelos economistas Marcelo Neri e Manuel Camillo Osorio, pesquisadores da FGV Social.

Um dos alertas do levantamento é que, nas últimas décadas, a educação contribuiu para diminuir ou minimizar a desigualdade social. Mas, a partir das cicatrizes herdadas da pandemia, o processo deve se reverter.

“Os resultados educacionais foram a única força constante contra a desigualdade nos últimos 30 anos. Isso ocorreu principalmente por causa da baixa qualidade do nosso ensino, ou seja, sempre é possível melhorar alguma coisa. E talvez a partir de agora o desempenho escolar passe a ser um vento contrário em vez de a favor”, afirma Neri.

A desigualdade de desempenho e acesso à escola é um entrave histórico do país, mas o agravamento da situação tem sido levantado por diversos especialistas desde o fechamento das escolas, no início de março. O estudo divulgado agora procura quantificar, a partir de microdados de matrícula, frequência (dias) e jornada (horas) da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Covid (Pnad Covid-19), o tamanho da disparidade durante a pandemia com o indicador “Tempo para Escola”.

Apesar do fraco desempenho da economia brasileira entre 2012 e 2019, Neri destaca que a média de anos de estudo subiu 13% no período, a desigualdade de anos de estudo (pelo índice de Gini) caiu 8,6% e, como resultado disso, o chamado “bem-estar educacional” aumentou 19,1%.

Por isso, os efeitos de longo prazo da paralisia das atividades escolares presenciais sobre a acumulação de capital humano não podem ser desprezados pelos gestores públicos, reforça Neri.

“Nos anos 1990, 70% da performance escolar dos filhos era explicada pela educação dos pais. Em 2014, esse índice, embora ainda elevado, melhorou para 49%. Como escola pública de qualidade é dar chance de uma outra possibilidade para o aluno pobre, o que a pandemia faz é aumentar essa geração de desigualdades”, afirma.

Pela média brasileira, sem filtro por Estado, classe social ou rede (pública ou privada), os jovens de 6 a 15 anos - logo, a maior parte no ensino fundamental - tiveram pouco mais de 2 horas e 22 minutos de aula por dia no mês de agosto, acima da faixa entre 15 e 17 anos, com cerca de 2 horas e 20 minutos. Isso ocorre porque, embora os mais velhos se dediquem mais às atividades remotas, os índices de evasão são maiores no ensino médio.

Além disso, chama a atenção que, para o ensino fundamental, a carga horária atingida está abaixo do limite mínimo estipulado pela redação original da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), um dos referenciais regulatórios para a oferta de ensino público e privado no país, que é de ao menos 4 horas por dia.

Mesmo entre os mais abastados, a carga horária ainda ficou aquém do exigido por lei. Cruzando território e classe social, o levantamento constatou que, para os jovens de 6 a 15 anos, a elite de Alagoas é a que mais estudou, com 3 horas e 55 minutos de horas diárias de aula em agosto.

“A análise por estrato de renda mostra que quanto mais pobre é o indivíduo, menor é a frequência na escola, menor a quantidade de exercícios recebidos e, para piorar, menor o tempo dedicado aos exercícios recebidos”, dizem os pesquisadores.

Vale a ressalva de que, por causa da pandemia, o governo flexibilizou as regras da LDB. Antes, as escolas deveriam dar no mínimo 800 horas de aulas por ano ao longo de ao menos 200 dias letivos. Agora, basta cumprir 800 horas anuais sem atingir a quantidade de dias.

A solução foi adotada para que os professores pudessem computar as atividades realizadas de forma remota, o que ainda é a realidade, apesar de todas as dificuldades de acesso, na maior parte do país por enquanto.

O levantamento também identificou que a principal causa da diferença de horas de estudo está mais relacionada à falta de oferta de conteúdos pelas redes escolares do que por desinteresse dos alunos. No mês de agosto, apenas 2,9% dos alunos de 6 a 15 anos mais ricos não receberam qualquer atividade das instituições de ensino em que estão matriculados, fatia que salta para 21,1% entre os alunos da classe E.

“Temos uma tendência de pensar políticas públicas pela ótica da oferta. Mas olhando para a ‘demanda dos estudantes’ a pandemia coloca um desafio numa escala que nunca tínhamos observados”, diz Neri.

Usando os filtros de idade e região, as disparidades crescem ainda mais entre os mais velhos e Estados em que o nó logístico é mais crítico. Na população com 16 a 17 anos do Pará, 62,59% não receberam qualquer atividade no período analisado. Em Santa Catarina, o melhor Estado por esse critério, a fatia é de 2,53%.

“De maneira geral, alunos da região Norte não só ficaram mais excluídos, mas também menos se envolveram com as poucas atividades que receberam, fatos que sugerem a existência de problemas de demanda por parte desses alunos e um agravamento das desigualdades regionais educacionais no Brasil pós-pandemia”, explicam os pesquisadores.

Segundo Neri, a informação de oferta educacional também é outra maneira de observar como estão evoluindo os índices de aprendizagem pelo país.

“Estados que conseguem fornecer boa infraestrutura aos seus alunos pobres, como Goiás e Ceará, são aqueles que estão tendo bons desempenho na qualidade do ensino”, afirma.