O globo, n. 31829, 28/09/2020. Mundo, p. 29

 

Nas redes

Janaína Figueiredo

28/09/2020

 

 

Polarização argentina alimenta campanha de desinformação
Nos últimos três meses, o governo do presidente argentino, Alberto Fernández, abandonou a moderação inicial e adotou medidas rejeitadas pela oposição social e política que, somadas a indicadores negativos, acentuaram a polarização no país. A aliança governista de peronistas e kirchneristas, no poder desde dezembro de 2019, vem enfrentando protestos e panelaços.

As divisões alimentaram uma campanha de desinformação que nas últimas semanas circulou no Brasil, propagada também por aliados e seguidores do presidente Jair Bolsonaro. Na última quintafeira, Bolsonaro voltou a atacar o país vizinho, afirmando que “tem outro país na América do Sul, mais ao Sul, (...) que rapidamente está partindo para um regime parecido com a nossa Venezuela”.

Em uma rede social, o deputado Eduardo Bolsonaro disse recentemente que a Argentina foi “destruída pelo governo socialista”. O deputado Osmar Terra referiu-se “à mais longa e inútil quarentena do mundo”. Viralizaram vídeos referindo-se à Argentina como uma ditadura, onde a polícia assassina quem não cumpre a quarentena. O governo de Fernández é acusado de perseguir a imprensa e de ser o responsável pela disparada da pobreza.

A base para a desinformação, explicou Laura Zommer, diretora da agência de checagem de fatos Chequeado, são fatos reais que acabam superdimensionados e distorcidos, em função de algum interesse. Um exemplo é o da acusação de que pessoas estão desaparecendo no país.

—Tivemos o caso de um rapaz, Facundo Astudillo, que foi detido pela polícia, desapareceu e depois seu corpo foi encontrado. É um caso real, que disparou a desinformação—disse.

Quando as campanhas afirmam que a polícia está assassinando quem não cumpre o isolamento, partem da notícia, confirmada pela Chequeado, de que a Justiça está investigando esta e mais oito mortes durante a quarentenanas, pelas quais os suspeitos são agentes policiais.

— Nosso trabalho aumentou 700% com a pandemia. Não necessariamente todos são conteúdos relacionados ao governo, também há muita desinformação sobre a Covid-19 —disse Zommer.

 ECONOMIA E PANDEMIA

A crise econômica é um fato real, com queda do PIB estimada em ao menos 11% neste ano, mas Fernández assumiu o poder em 10 de dezembro e já recebeu de seu antecessor, Maurício Macri (20152019), um país devastado. Macri, por sua vez, herdou uma economia em crise de Cristina Kirchner (20072015), atual vice-presidente, já que a Argentina oscila entre anos de baixo crescimento e queda do PIB desde 2012.

Em consequência, a pobreza também aumenta. A projeção é de que quase 50% dos argentinos estarão abaixo da linha da pobreza no final deste ano. No final do governo Macri, a taxa era de 35,5%. No começo de 2015, o percentual de pobres era de 30%.

As informações sobre a quarentena também são apresentadas de maneira distorcida. No início deste mês, depois de 180 dias de isolamento social obrigatório na capital e na província de Buenos Aires (as demais províncias flexibilizaram e tiveram de voltar a endurecer), a Argentina chegou a ocupar o primeiro lugar em número de mortos por dia por milhão de habitantes. No entanto, em registro total de mortes, pouco mais de 15 mil, o país é superado por vários vizinhos, incluindo Brasil, Chile, Peru, Colômbia e Equador.

Com a pandemia e a economia em frangalhos, as posições se acirraram. A radicalização de Fernández contribuiu para este cenário, opinou o analista Sergio Berenztein.

Desde maio, o presidente argentino irritou um setor da sociedade defendendo a expropriação de uma empresa privada que havia falido; promovendo uma reforma da Justiça que é vista pela oposição como uma tentativa de acobertar casos de corrupção do kirchnerismo; aumentando as restrições à compra de dólares num país onde a população que pode poupar opta pela moeda americana; e impulsionando um imposto patrimonial para taxar os mais ricos.

Fernández disse que “os dólares não são para guardar, são para produzir”, e o presidente do Banco Central, Miguel Pesce,dissequequemcompradólares no mercado paralelo (estima-se que 6 milhões de argentinos,deumtotalde41milhões) é criminoso.

—A proposta de um imposto sobre a riqueza, por exemplo, afasta investimentos. Em vez de aproveitarem o sucesso da renegociação da dívida pública, adotam medidas como o controle no mercado cambial —disse Berenztein.

Para ele, “a simples presença de Cristina instala um componente ideológico e agrega uma dose de confronto a tudo”:

—Um setor da sociedade está muito zangado. Empresas estão saindo do país, tudo isso é real. Agora, tem gente dizendo que vamos virar uma Venezuela. Não, não vamos. O que vamos é ficar mais pobres.

Na visão de Santiago Canevaro, sociólogo e pesquisador do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (Conicet), “em países com recursos escassos, a discussão sempre gira em torno da distribuição desses recursos. De quem tiramos e para quem damos”.

— O fundo deste debate é que papel queremos que o Estado cumpra. Alguns querem um Estado mais interventor, outros menos —apontou.

Para Canevaro, muitos argentinos estão zangados com o governo pelas ferramentas que estão sendo usadas para redistribuir a riqueza:

— A Argentina é uma tempestade perfeita. Quarentena longa, cansaço social, tudo se amplifica.

“Um setor da sociedade está muito zangado. Empresas estão saindo do país, tudo isso é real. Agora, tem gente dizendo que vamos virar uma Venezuela. Não, não vamos. O que vamos é ficar mais _ pobres”

Sergio Berenztein, analista político

“Em países com recursos escassos, a discussão sempre gira em torno da distribuição desses recursos. De quem tiramos e para quem damos. O fundo deste debate é que papel queremos que o Estado cumpra. Alguns querem um Estado mais interventor, outros _ menos”

Santiago Canevaro, sociólogo