O globo, n. 31830, 29/09/2020. Sociedade, p. 11

 

'Boiada' no Conama

Leandro Prazeres

29/09/2020

 

 

Sob comando de Salles, conselho revoga normas que protegem restingas e manguezais

 O Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) revogou ontem duas resoluções com normas mais rígidas de proteção às áreas de vegetação de restinga e manguezais em todo o país. O conselho é presidido pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. A revogação das resoluções era uma demanda antiga da construção civil e do setor hoteleiro, entre outros.

As normas anuladas (302 e 303) delimitavam critérios específicos para instituição de áreas de preservação permanente em regiões ocupadas por restingas e manguezais, dois biomas ricos em biodiversidade. Elas previam, por exemplo, que as áreas de restinga de 300 metros a partir da linha do mar em direção ao continente fossem consideradasáreas de preservação ambiental. Nessas Áreas de Preservação Permanente, conhecidas como APPs, as regras para a exploração são mais rígidas.

CONSULTORIA JURÍDICA

A revogação das resoluções acontece cinco meses depois de o ministro Ricardo Salles ter dito, em uma reunião ministerial, que o governo deveria aproveitar que as atenções da sociedade estariam volta das para o combate à Covid-19 para “ir passando a boiada” e “simplificar” a legislação ambiental a partir de mudanças “infralegais”, como alterações de resoluções do Conama.

O argumento principal da consultoria jurídica do Ministério do Meio Ambiente (MMA) para as mudanças é de que essas resoluções teriam perdido a validade com a entrada em vigor do Código Florestal, em 2012, que teria artigos substituindo as regras. Porém, ambientalistas argumentam que o código não é claro em relação no tópico e oferece menos proteção que as resoluções.

Os especialistas também argumentam que a revogação das duas normas poderá prejudicar áreas sensíveis do meio ambiente marinho brasileiro.

—Isso vai impactar mais diretamente o bioma da Mata Atlântica e vai repercutir sobre áreas de reprodução de tartarugas marinhas, por exemplo —afirma Carlos Teodoro José Hugueney Irigaray, representante da Associação Novo Encanto de Desenvolvimento Ecológico.

A representante do Ministério Público Federal (MPF) no Conama, Fátima Borghi, se mostrou contrária à revogação, embora o órgão não tenha direito a voto. Ela criticou o posicionamento de alguns conselheiros que, na sessão, votaram a favor da revogação argumentando que o faziam com base nos pareceres jurídicos do MMA.

— A responsabilidade do servidor não desaparece em cima de um parecer jurídico que é todo descabido. —disse a procuradora.

Na decisão, a posição do governo no Conama, favorável à revogação das normas, teve ampla maioria. Essa maioria foi favorecida, em parte, por um decreto do presidente Jair Bolsonaro de maio de 2019, que reduziu de 96 para 23 o número de conselheiros titulares do Conama, com menos vagas para a sociedade civil.

RESÍDUOS DE AGROTÓXICOS

Na mesma sessão, o Conama também aprovou uma resolução que permite a incineração de resíduos de agrotóxicos em fornos utilizados para a produção de cimento. A preocupação é de que essa queima, até então proibida, possa liberar substâncias tóxicas na atmosfera e contaminar produtos de cimento posteriormente fabricados nesses fornos.

A resolução prevê limites máximos de poluentes dos agrotóxicos que poderão ser incinerados, mas também permite que órgãos ambientais locais autorizem a queima de agrotóxicos com níveis superiores ao da resolução desde que as autoridades comprovem que haverá um “ganho ambiental” nesse processo.

A resolução foi aprovada pela maioria dos conselheiros do Conama, mas foi questionada pela procuradora Fátima Borghi. Segundo ela, a resolução violaria convenções internacionais.

REAÇÃO

Parlamentares, instituições que atuam na defesa do meio ambiente e o MPF anunciaram medidas para tentar barrar a decisão do Conama. Entre elas estão ações judiciais e um projeto de decreto legislativo já apresentado na Câmara dos Deputados.

A gerente do projeto Água Pura da ONG S.O.S Mata Atlântica, Malu Ribeiro, disse que a entidade pretende se unir a outras organizações e judicializar a questão.

— Estamos avaliando de que formas iremos fazer, mas a gente deve, sim, recorrer à Justiça. Essa reunião de hoje (segunda-feira) e as decisões que foram tomadas aconteceram de forma absolutamente atropelada e açodada —afirmou.

Outra entidade que se manifestou contra a decisão do Conama foi a ONG Greenpeace. Segundo ela, Ricardo Salles e o governo do presidente Bolsonaro atuam em prol de interesses dos “setores que mais se beneficiam em curto prazo da desregulamentação da proteção ambiental” e colocam em risco as áreas de restinga e manguezais.

“O Ministro Ricardo Salles, mais uma vez, mostra que, ao ser inimigo da participação social, o governo é inimigo da coletividade e que governa para os setores que mais se beneficiam em curto prazo da desregulamentação da proteção ambiental, como o agronegócio, imobiliários e industriais, por meio de revogações que promovem redução nos limites de proteção de restingas e mangues, flexibilização do regramento para licenciamento de irrigação e abertura de brechas para a queima de resíduos de agrotóxicos”, diz a ONG na nota.

A Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa) também emitiu uma nota de repúdio. Segundo ela, a decisão viola o princípio de “não-retrocesso” em matéria ambiental ,segundo o qual a legislação não poderia retroceder para reduzir a proteção ao meio ambiente.

A procuradora da República Fátima Borghi, que participou da audiência do Conama como representante do MPF, também reforçou que irá entrar com uma representação contra os resultados da reunião realizada ontem.

— Vamos representar contra o regimento interno do Conama, que foi alterado, e que permitiu que esse assunto fosse levado de supetão à apreciação dos conselheiros. Além disso, deveremos representar para que o MPF, em primeira instância, proponha alguma ação contra esse resultado —afirmou a procuradora.

A Câmara de Meio Ambiente do MPF também anunciou que irá analisar a legalidade das revogações.

O deputado federal Alessandro Molon (PSB-RJ) propôs um projeto de decreto legislativo suspendendo as revogações aprovadas.

— O ministro do Meio Ambiente acaba de colocar em prática o que havia dito em reunião ministerial no mês de abril: aproveitar que as atenções da população estavam voltadas para o enfrentamento à Covid-19 para passar uma “boiada” e acabar com as regras ambientais. Infelizmente, este dia chegou — afirmou Molon.