O globo, n. 31831, 30/09/2020. Economia, p. 19

 

Após reação negativa

Marcello Corrêa

Geralda Doca

Victor Farias

30/09/2020

 

 

Planalto e líderes mantêm defesa da proposta, mas já cogitam tirar Fundeb

 Mesmo com a reação negativa à proposta de adiar o pagamento de dívidas judiciais e recorrer a dinheiro do Fundeb para financiar o Renda Cidadã, o governo decidiu seguir em frente com o plano de criar o novo programa social. Fontes que participam das conversas já admitem, no entanto, que o uso de recursos para a educação básica pode ser poupado durante a negociação no Congresso.

Ontem, o presidente Jair Bolsonaro se defendeu de críticas à medida, acusada por analistas do mercado financeiro e especialistas de contabilidade criativa, já que o benefício não seria custeado com economia real de despesas, mas por meio de uma espécie de endividamento indireto. Bolsonaro sinalizou que ainda aguarda uma “solução racional ”, masque não pretende demorara tom aruma decisão.

— Tudo que eu faço, dizem que estou pensando em 2022. Se nada faço, sou omisso. Se faço, estou pensando em 2022. Agora, não queiram estar no meu lugar, vou fazer o possível para buscar soluções. Vou para uma máxima militar, eu quero a solução racional, preciso de ajuda no tocante a isso. Agora, senão aparecer nada, vou tomar aquela decisão que o militar toma. Pior do que uma decisão mal tomada é uma indecisão. Eu não vou ficar indeciso. O tempo está correndo —disse Bolsonaro a apoiadores, na saída do Palácio da Alvorada.

 ‘PESSOAL DO MERCADO’

O presidente comentou ainda que, quando o auxílio acabar, todos vão sofrer, até o “pessoal do mercado”:

— Aquele ditado “estamos no mesmo barco” é o mais claro que existe no momento. O Brasil é um só. Se começar a dar problema, todos sofrem. O pessoal do mercado não vai ter também renda, vocês vivem disso, de aplicação.

A proposta apresentada na segunda-feira por integrantes do governo e do Congresso prevê como principal fonte de financiamento para o novo benefício a criação de um limite no pagamento dos chamados precatórios — débitos contraídos pela União quando perde em disputas na Justiça. A trava seria de 2% da receita do governo federal e, assim, reduziria a previsão de gastos com essas dívidas de R$ 55 bilhões para R$ 16 bilhões em 2021. A diferença de R$ 39 bilhões iria para o programa social.

Perguntado sobre a crítica de que essa rolagem dos precatórios seria uma espécie de calote, o relator da proposta, senador Marcio Bittar (MDBAC), rebateu a acusação.

— Por que calote? Renegociar dívidas é calote? Então governos estaduais e municipais são todos caloteiros? — afirmou o parlamentar, referindo-se ao fato de que governos locais também limitam esses pagamentos.

O uso do Fundeb seria uma fonte alternativa. A proposta autoriza o governo a transferir parte da complementação que faz ao fundo para custear a educação em estados e municípios para reforçar o orçamento do Renda Cidadã. Segundo cálculos de técnicos do Legislativo, isso poderia render um adicional de R$ 3,3 bilhões ao novo programa.

De forma reservada, líderes da base e ministros que participaram da elaboração da proposta admitem que a inclusão do fundo como fonte de custeio do programa é “estratégica”. Diante da resistência em comprometer recursos que vão para a educação, parlamentares estariam dispostos a ceder nesse ponto para garantir apoio à rolagem dos precatórios, fonte de recursos mais importante.

RESISTÊNCIA NO CONGRESSO

Há uma avaliação de que o u sodo Fundeb para ajudara manter o Renda Cidadã sofrerá forte resistência no Congresso, diante das reações já antecipadas por lideranças. Embora os parlamentares evitem criticar programas sociais, porque isso traz desgaste político, reduzir verbas da educação para essa finalidade não será um discurso fácil.

O líder do chamado centrão na Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL), afirmou ontem que a mudança no Fundeb deve enfrentar resistências:

— Politicamente, a questão do Fundeb realmente é mais difícil. Achoque não prosperará. Agora, não vejo nenhuma inconstitucionalidade na questão dos precatórios. Você não está deixando de pagar os precatórios. Está fazendo uma previsão de pagamento para dois, três anos, num percentual fixado, como já acontece nos estados e municípios.

O Fundeb é o principal fundo de financiamento da educação básica eé composto pela arrecadação de impostos municipais e estaduais, complementados com recursos do governo federal. O mecanismo teria validade só até este ano, mas uma emenda constitucional aprovada há um mês renovou a medida de forma permanente e ampliou a previsão de participação da União.

No início de junho, O GLOBO antecipou que a equipe econômica tentava destinar recursos da ampliação do Fundeb para o então Renda Brasil, primeiro nome do Renda Cidadã. No entanto, na época, a proposta foi rechaçada pelos parlamentares.

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Entrevista - Tabata Amaral : "O governo está dando voltas sem sair do lugar"

30/09/2020

 

 

A deputada Tabata Amaral (PDT-SP) criticou a proposta de direcionar recursos do Fundeb e do pagamento de precatórios para financiar o Renda Cidadã. Como alternativa, defende o avanço de uma agenda social apresentada por ela e outros parlamentares em 2019, que previa a ampliação do Bolsa Família. A proposta não avançou porque as comissões da Câmara estão paradas desde o início da pandemia. De acordo com a deputada, é possível financiar essas mudanças com enfrentamento de privilégios tributários e nos altos escalões do serviço público: “Para poder financiar um projeto como esse, tem várias ideias, como a PEC dos penduricalhos, o fim dos supersalários, uma reforma tributária, o fim das isenções fiscais.”

 Como vê a proposta do governo de usar recursos do Fundeb para o Renda Cidadã?

É descabido. É um absurdo o que o governo está propondo, por algumas razões. O governo tentou fazer isso durante a discussão sobre o Fundeb e perdeu. Perdeu porque a sociedade se mobilizou, porque a gente se mobilizou na Câmara, no Senado. Por que alguém vai acreditar que o Brasil um dia vai ser mais justo, mais desenvolvido, se a gente retira dinheiro da educação básica? O governo está dando voltas sem sair do lugar nessa discussão da renda básica há meses.

É possível financiar um programa de renda básica que seja maior que o Bolsa Família, como o governo quer?

Se a gente tiver coragem de enfrentar as isenções fiscais e os supersalários, privilégios e penduricalhos dos altos escalões do setor público, a gente consegue financiar. Porque, nos dois casos, são contas bilionárias.

E como é o projeto que você e outros parlamentares apresentaram?

O projeto de lei amplia o Bolsa Família, faz um reajuste nos valores e traz um benefício para a primeira infância. A ideia é dar um benefício adicional para as mulheres que estão amamentando, para crianças até 5 anos e atualizar as definições de pobreza e extrema pobreza. Já vamos trazer uma discussão para uma renda básica de médio prazo, um projeto de transição que traz uma resposta urgente, que a gente não espera que saia do governo.

Dado que estamos quase em outubro, daria tempo de resolver e montar um projeto de renda mínima para o ano que vem, para que as pessoas não fiquem desassistidas depois que acabar o auxílio emergencial?

Se a gente aproveitar o trabalho dessa comissão, eu acredito que sim, porque o projeto já tem seu custo calculado, os membros já estão indicados, inclusive a lista das audiências que devem ser feitas já foi aprovada. Com certeza vai ser um caminho muito mais rápido do que esperar que o governo envie um projeto e comecem as discussões, os cálculos.