O Estado de São Paulo, n.46291, 14/07/2020. Internacional, p.A15

 

Racismo nos EUA, tradição no Brasil

14/07/2020

 

 

Bandeira confederada . Cidades de São Paulo celebram confederados, mas ativistas pedem que símbolo seja guardado

História. Mulher descendente de sulistas dos EUA no cemitério de veteranos da Guerra Civil, em Santa Bárbara d'oeste

Para Marina Lee Colbachini, de 35 anos, era uma tradição familiar. A cada primavera, ela se juntava às multidões que desciam para uma cidade do Sudeste do Brasil, vestia uma saia típica do século 19 e dançava ao som de música country. O tema do festival anual: os Estados Confederados da América. Quando ela se atentou para o evento, deixou de frequentá-lo.

Depois da Guerra Civil, milhares de sulistas derrotados vieram se exilar no Brasil, um país onde ainda existia a escravidão. Por décadas, seus descendentes organizaram uma grande festa que agora atrai milhares de pessoas para Americana e Santa Bárbara d'oeste – cidades do interior de São Paulo próximas de Campinas – para comemorar tudo à maneira sulista.

A bandeira confederada? Está por toda parte. Nos mastros e nas bugigangas. Pintada na pista de dança. Empunhada por homens vestidos como soldados da Confederação. Adornando o cemitério que abriga os restos mortais dos veteranos do Exército rebelde.

Agora, o acerto de contas racial que se seguiu à morte de George Floyd, nos EUA, inspira um reexame de valores no Brasil, assim como ocorreu com Marina. De um lado, a Fraternidade de Descendentes Americanos, o grupo que organiza a festa anual e cuida do cemitério dos confederados. Do outro, a União de Negros pela Igualdade, que vem liderando a iniciativa da comunidade para retirar a bandeira do festival.

Depois de perderem a guerra nos EUA, milhares de sulistas, com medo de viver sob o domínio do Norte e entre escravos libertos, estavam procurando oportunidades. Alguns foram para o México. Outros, para a Venezuela. Mas o Brasil, que não aboliria a escravidão por mais 23 anos, até 1888, parecia ser o mais atraente. "Eles (americanos) vieram para continuar com a posse de escravos", diz Luciana Brito, historiadora da Universidade Federal da Bahia.

Cláudia Monteiro, presidente da União de Negros pela Igualdade, raramente prestava muita atenção à festa. Ela passou 40 de seus 48 anos em Santa Bárbara d'oeste e, para ela, o evento era só uma peculiaridade da cidade. No verão de 2015, ela e outro ativista começaram a falar sobre como Dylann Roof – assassino de nove fiéis de igrejas negras em Charleston, havia glorificado a bandeira confederada, que então foi retirada das repartições públicas da Carolina do Sul. No Brasil, as autoridades não estavam pedindo a remoção do símbolo. Ao contrário, apoiavam a festa.

Um lado afirma que a Guerra Civil foi um conflito sobre a escravidão. O outro diz que era uma luta pela independência. A festa deste ano, marcada para abril, foi cancelada em razão do coronavírus. Mas, tanto Cláudia quanto João Leopoldo Padoveze, presidente da Fraternidade, que organiza o evento e se recusa a atender os pedidos dos ativistas, sabem que a bandeira vai voltar a tremular.

"É a história da minha família", diz Padoveze. "É racismo", responde Cláudia. "Quem está certo e quem está errado?", Padoveze questiona. "Temos visões diferentes de mundos diferentes", garante a ativista. / WP, TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU