Correio braziliense, n. 20957, 09/10/2020. Política, p. 2

 

Palavra final de Celso: ninguém está acima da lei

Renato Souza 

Sarah Teófilo 

09/10/2020

 

 

Em sua última sessão no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), onde passou 31 anos de sua vida, o ministro Celso de Mello votou favorável à decisão de que o presidente Jair preste depoimento presencialmente à Polícia Federal no âmbito do inquérito que investiga suposta interferência política do chefe do Executivo na corporação. O plenário do Supremo julga um recurso apresentado pela Advocacia Geral da União (AGU), para que o presidente deponha por escrito.

Relator do caso, Celso de Mello foi o único a votar ontem. O decano está prestes a se aposentar, o que ocorre na próxima terça-feira (13), e após seu voto, de cerca de duas horas, o presidente do Supremo, Luiz Fux, suspendeu a sessão. Fux não informou se o julgamento deve continuar na próxima sessão. Como já havia dito no mês passado, quando negou o pedido do presidente de depor por escrito, Mello frisou que o presidente da República figura como investigado no caso e o depoimento por escrito é facultado apenas para testemunhas.

O ministro ressaltou que todos são iguais perante a lei e refutou a ideia de privilégios, afirmando que a República não prevê tratamentos distintos aos cidadãos. “Não custa insistir, neste ponto, por isso mesmo, na asserção de que o postulado republicano repele privilégios e não tolera discriminações, impedindo que se estabeleçam tratamentos seletivos em favor de determinadas pessoas e obstando que se imponham restrições gravosas em detrimento de outras”, disse.

Sobre a forma de depor, o decano pontuou que é garantido a todos os investigados ou réus, “não importando a condição política ou hierárquica que ostentem, a prerrogativa contra a autoincriminação, bem assim o direito ao silêncio e, também, o de não comparecimento ao ato de interrogatório”. “Não confere ao Chefe do Poder Executivo da União o privilégio de eleger a forma pela qual ele quer e pretende seja efetivado o ato de sua inquirição policial”, sustentou.

Isonomia

O juiz lembrou que o ex-ministro da Justiça Sergio Moro, que também é investigado, por falsa comunicação de crime caso as denúncias feitas por ele não se confirmem, foi ouvido presencialmente, e deve haver tratamento isonômico entre os réus. “Ninguém, absolutamente ninguém, tem legitimidade para transgredir e vilipendiar as leis e a Constituição de nosso país. Ninguém, absolutamente ninguém, está acima da autoridade do ordenamento jurídico do Estado brasileiro”, afirmou o magistrado.

De acordo com Celso de Mello, apesar de ocupar o mais elevado cargo do Poder Executivo, a legislação não concede ao presidente o privilégio de prestar esclarecimentos por escrito, quando é acusado de crime. “Entendo que não, que não pode, que não lhe assiste esse direito, pois as prerrogativas submetidas ao presidente da República são aquelas que a Constituição e as leis do Estado o concederam”, disse.

No recurso, a AGU sustenta que pode prestar os esclarecimentos por escrito, argumentando o princípio de isonomia visto que o ex-presidente Michel Temer (MDB) teve autorização de depor por escrito em 2017 e 2018, por autorização dos ministros Edson Fachin e Luís Roberto Barroso. Celso de Mello disse conhecer os casos, mas ressaltou que entende que “a orientação por eles perfilhada não pode ser aplicada aos Chefes dos Poderes da República, inclusive ao próprio Presidente da República, quando se registrar situação em que figurem como suspeitos, investigados ou réus”.

Sobre a questão de isonomia levantada pela AGU, o decano afirmou que o seu entendimento não ofende o princípio de igualdade, mesmo com o caso de Temer. Ele citou o ex-ministro do STF Terori Zavascki, que negou pedido de depoimento por escrito do senador Renan Calheiros (MDB-AL), na época era presidente do Congresso Nacional. “O postulado da isonomia visa justamente evitar a concessão de privilégios injustificáveis — e inexistentes em lei — para determinado grupo de pessoas ou para certas autoridades públicas, ainda que se trate do Chefe de Estado”, disse o ministro.

Após o voto do decano, o presidente do STF, ministro Luiz Fux, encerrou a sessão. Ele afirmou que esse gesto seria uma homenagem a Celso de Mello, a única voz a ser ouvida no plenário do Supremo na sessão de ontem. Não há previsão de quando o julgamento prosseguirá, já sem a presença do relator.