Correio braziliense, n. 20957, 09/10/2020. Saúde, p. 13

 

Mutações do vírus não devem afetar vacinas

Vilhena Soares 

09/10/2020

 

 

Um dos temores relacionados às vacinas da covid-19 que estão em desenvolvimento é que elas tenham um prazo de utilidade muito curto. Isso porque as fórmulas são desenvolvidas com base em uma cepa (forma genética) de um vírus, que sofre alterações em seu DNA com o passar do tempo. Dessa forma, há o risco de a proteção deixar de fazer efeito. Um estudo publicado na última edição da revista Nature traz uma boa notícia. O trabalho sinaliza que a eficácia dos imunizantes em teste deve permanece mesmo com mudanças sofridas pelo Sars-CoV-2. Os investigadores realizaram testes com furões que, depois de imunizados, mantiveram-se protegidos ao serem expostos a cepas distintas do novo coronavírus.

No estudo, os pesquisadores explicam que a maioria das vacinas para covid-19 em desenvolvimento foi construída com base na cepa D original do vírus, a mais comum durante o início da pandemia. Desde então, o vírus evoluiu para a cepa G, que, agora, é dominante globalmente, sendo a responsável por cerca de 85% dos genomas do Sars-CoV-2 já mapeados e publicados em pesquisas científicas.

“A mutação G, conhecida como D614G, da proteína spike, o principal elemento do vírus Sars-CoV-2, se tornou um dos maiores temores de muitos especialistas. As especulações eram de que ela afetaria negativamente as vacinas feitas antes do seu registro. Mas o nosso trabalho mostra que não”, destaca, em comunicado, Seshadri Vasan, pesquisador da Universidade de York, no Reino Unido, e principal autor do estudo.

Vasan e sua equipe analisaram furões que receberam a vacina INO-4800, feita com base na cepa D pela empresa Inovio Pharmaceuticals, em parceria com a Fundação Bill Gates. Os animais foram expostos ao vírus Sars-CoV-2 em cepas D e G. Os especialistas observaram que as cobaias foram protegidas de todas as formas do patógeno. “Apesar dessa mutação D614G na proteína spike, confirmamos, por meio de experimentos que foram feitos de forma cuidadosa e repetitiva, que as vacinas candidatas ainda são eficazes”, diz o líder do estudo.

O pesquisador explica que os resultados indicam que é baixo o risco de  que alterações nas fórmulas de imunização precisarão ser feitas futuramente. “Também descobrimos que a cepa G provavelmente não requer ‘combinação de vacinas’ frequente, quando novas vacinas precisam ser desenvolvidas sazonalmente para combater as cepas de vírus em circulação, como é o caso da gripe”, explica Vasan.

Os autores do artigo enfatizam que o estudo foi feito em animais e que é preciso fazer a análise em humanos. “Ainda assim, destacamos que os resultados são positivos. Acreditamos que estamos mais perto de uma vacina segura e eficaz para proteger as pessoas e salvar vidas”, afirmam. A fórmula está sendo testada nos Estados Unidos em ensaios clínicos, com humanos.

Vigilância genômica

David Urbaez, infectologista do laboratório Exame, em Brasília, explica que os dados do estudo científico são positivos e ressalta que o monitoramento de alterações do genoma do vírus é essencial para compreender melhor o patógeno. “Vemos que, a partir de fevereiro, quando o vírus começou a se propagar de forma mais acelerada, foi quando essa mutação D614G surgiu e se estabeleceu. Sabemos disso porque fazemos o que chamamos de vigilância genômica. Entender as mudanças que vão ocorrer no vírus é essencial para saber se ele pode aumentar a sua capacidade de contágio, por exemplo. Mas essa alteração não permitiu que o vírus tivesse muito mais força, e vemos também agora que o efeito das vacinas não deve sofrer alterações”, analisa.

O médico explica que é normal patógenos sofrerem mudanças com o passar do tempo, mas todas as mudanças observadas, até agora, no Sars-CoV-2 não são preocupantes. “As pessoas escutam que o vírus sofreu uma mutação e já ficam desesperadas, mas, até agora, não temos nada a temer em relação a isso. Temos patógenos que precisam, sim, que as vacinas sejam atualizadas, devido às mudanças, como é o caso da gripe, mas isso não ocorreu com a covid-19 ainda”, justifica. “Outras mutações que o vírus enfrenta também são usadas para fazer um rastreamento. Com elas, podemos dizer se ele veio de um estado do Brasil, por exemplo, ou de outro. Esses dados contribuem bastante para compreender o comportamento do patógeno.”

Renato Kfouri, diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), também destaca que o acompanhamento das mudanças genômicas do Sars-CoV-2  é essencial para controlá-lo. “É normal que surjam mutações, toda vez que o vírus faz uma cópia de si, tem a possibilidade de ocorrer uma falha nesse processo. Pode ser que ocorram também mudanças positivas, ele pode perder o poder do contágio, por exemplo. Ter esses dados é algo importante no combate à doença”, detalha.

Kfouri explica que apenas uma mudança muito expressiva faria com que as vacinas feitas com base na cepa original do Sars-CoV-2 precisassem ser adaptadas. “Apenas uma alteração de peso, como ocorre no vírus da influenza da gripe anualmente, exigiria essa reformulação. Mas acreditamos que existem poucas chances de isso ocorrer, já que a maioria dos vírus é estável nesse quesito. Como acontece, por exemplo, com a hepatite e a caxumba. Sabemos também que a família dos coronavírus, a qual pertence o da covid-19, também tem essa estabilidade. Então, acreditamos que é difícil que isso ocorra.”

Elemento-chave

Ela é o principal elemento do vírus Sars-CoV-2, responsável pela covid-19. Essa proteína é a responsável pela entrada do patógeno nas células humanas, ao se ligar em uma proteína presente em diferentes locais do organismo humano, a ACE2. Os anticorpos produzidos pelo sistema imunológico do corpo depois da contaminação têm como alvo a proteína S.