Título: Um país entre amores e rancores
Autor: Mariz, Renata; Martins, Victor; Colares, Juliana
Fonte: Correio Braziliense, 06/03/2013, Mundo, p. 19
Chávez dividiu a sociedade venezuelana e a história política do país.
Distribuiu renda com receitas do petróleo, mas deixou a economia nocauteada pela inflação
Sob o comando de Hugo Chávez nos últimos 14 anos, a Venezuela assistiu ao crescimento da economia em mais de 200% e à ascensão social das camadas mais pobres. Colocou mais alunos nas escolas e reforçou os quartéis. Mas os índices de violência praticamente dobraram no mesmo período, e o líder carismático não conseguiu vencer taxas alarmantes de desemprego, nem os 30% de inflação anual. Para piorar, o país permanece dependente da exportação de petróleo.
A transformação do sistema político e econômico, com medidas por vezes consideradas ditatoriais — especialmente no que diz respeito à propriedade privada e ao controle da mídia —, e a retomada de um discurso anti-imperialista que parecia fora de moda colocaram o presidente no centro de seguidas polêmicas. Ele polarizou o país até a morte, e para os venezuelanos parecia haver apenas a opção entre amá-lo e odiá-lo.
“A Venezuela mantinha uma rigidez democrática formal que estabelecia a alternância de poder. Com a ideia de que essa lógica só contribuía para que os mesmos grupos estivessem no governo, Chávez vem com um discurso de revolução social e começa a ganhar as eleições em um país sem voto obrigatório. Ou seja, as massas começam a ir às urnas. Ele se organiza em torno de um partido e a oposição também se articula, criando a polarização”, explica Creomar de Souza, professor de relações internacionais da Universidade Católica de Brasília.
Eleito o presidente mais jovem da Venezuela, aos 44 anos, Chávez redesenhou o modelo institucional, explica Souza. “Para fazer um paralelo, Lula aceitou o que estava posto. Chávez, sob o argumento de que não conseguiria cumprir as promessas, faz ajustes, que envolvem uma nova Constituição, a emenda que garantiu a última eleição e outros atos”, pontua o professor.
Em meio às controvérsias envolvendo a era Chávez, Thiago Gehre, professor da Universidade Federal de Roraima e pesquisador do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), destaca o foco social como um dos legados mais importantes do presidente. “A riqueza do petróleo não revertia o estádio de subdesenvolvimento histórico. Chávez vem com uma ideia de justiça social e consegue melhorar a vida dos mais pobres”, afirma Gehre.
As transformações sociais são visíveis, embora não tenham acompanhado o ritmo de crescimento do PIB (veja infografia). Chávez também investiu pesado no reequipamento das Forças Armadas. “Com isso, ele angaria a simpatia dos militares, sobretudo os jovens. Também faz parte do simbolismo que Chávez tenta criar, ao passar a imagem de um Estado pronto para qualquer confronto, mas tudo dentro da dinâmica do discurso”, diz Souza.
Na economia
No aspecto econômico, Chávez deixa um legado complexo. Depois de 14 anos marcados por intervenções na iniciativa privada, um agressivo processo de estatização e gastos públicos exagerados, a Venezuela chega a 2013 desindustrializada e com a maior inflação da América Latina, à exceção do Haiti. Com 51% das receitas do governo originadas da venda de petróleo para os Estados Unidos, o país pode se complicar ainda mais se o comércio com o “inimigo ianque” for interrompido.
Na prática, o modelo chavista usou o petróleo para distribuir renda, segundo economistas. O resultado é que os venezuelanos têm dinheiro, mas, como quase 70% dos alimentos são importados, a inflação disparou para uma taxa anual próxima a 30%, segundo o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI).
Bolívar contra o Tio Sam
Nacionalismo, bolivarianismo e antiamericanismo são as marcas indeléveis do ideário chavista, presentes até mesmo no drama final do caudilho: em 2011, o próprio Chávez insinuou que Washington teria criado uma tecnologia capaz de causar câncer em líderes latino-americanos. Atualizando a herança de Simón Bolívar — patriarca da independência da Venezuela e de outras ex-colônias espanholas, cujo sonho era unir a América Latina sob uma só bandeira —, o coronel elegeu o Tio Sam como alvo de sua cruzada. Mas não rompeu as relações comerciais, estratégicas para ambos os lados. “O antiamericanismo é a palavra-chave para entender o chavismo. Não pelo país em si, mas pelo que os EUA representam no discurso chavista, como a potência que tenta colonizar e escravizar os povos da América Latina”, explica Dawisson Lopes, professor de política internacional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Linha do tempo Momentos marcantes da carreira política do líder bolivariano 1992 4 de fevereiro - o tenente-coronel Hugo Chávez fracassa em uma tentativa de golpe de Estado contra o presidente Carlos Andrés Pérez e é preso. Em 1994, é anistiado.
1998 6 de dezembro - Chávez vence a eleição presidencial com 56% dos votos.
1999 2 de fevereiro - assume a Presidência e convoca uma Constituinte, boicotada pela oposição. A nova Carta é aprovada em 15 de dezembro, em referendo.
2000 30 de julho - já segundo a Constituição bolivariana, Chávez é novamente eleito presidente, com 56,9% dos votos.
2001 10 de dezembro - o governo chavista enfrenta greve nacional, convocada por empresários e apoiada pela maior central sindical.
2002 11 de abril - após uma grande manifestação pela renúncia do presidente, que termina com 19 mortos, um grupo de militares depõe Chávez e o leva para um quartel fora de Caracas. Dois dias depois, ele volta ao palácio apoiado por forte mobilização popular.
2004 15 de agosto - Chávez submete-se a um referendo revocatório de seu mandato, convocado por iniciativa da oposição, e é confirmado no cargo com 59% dos votos.
2005 4 de dezembro - a oposição boicota novamente a eleição e o chavismo conquista todas as cadeiras da Assembleia Nacional.
2006 3 de dezembro - Chávez é novamente reeleito, com 62% dos votos.
2009 14 de janeiro - a Assembleia Nacional aprova as reeleições sucessivas na forma de emenda à Constituição. No dia seguinte, a emenda é confirmada em referendo.
2011 30 de junho - em mensagem à nação, Chávez admite que foi operado de câncer em Cuba.
2012 6 de fevereiro - Chávez é operado de um novo tumor na mesma região de onde foi retirado o primeiro.
Março a maio - é submetido a tratamento de radioterapia em Cuba.
7 de outubro - é reeleito para o período 2013-2019, com 55% dos votos.
11 de dezembro - submete-se à quarta operação contra o câncer, em Havana.
2013 9 de janeiro - o Supremo Tribunal de Justiça determina que Chávez tome posse do novo mandato quando estiver em condições e que o gabinete siga em funções.
10 de janeiro - o presidente não comparece à posse perante a Assembleia Nacional.
15 de fevereiro - divulgadas fotos de Chávez no hospital de Havana, as primeiras imagens do presidente doente em dois meses.
18 de fevereiro - Chávez anuncia pelo Twitter que voltou à Venezuela e foi internado no Hospital Militar de Caracas.
4 de março - o governo anuncia que o presidente enfrenta uma “nova e severa infecção”.
5 de março - Hugo Chávez morre às 16h25 (17h55 em Brasília), segundo as informações do governo.