Valor econômico, v. 21, n. 5114, 26/10/2020. Brasil, p. A2

 

Legislação dispensa aval da Anvisa para vacina, mas prioriza governo

Murillo Camarotto

26/10/2020

 

 

Lei permite compra se produto estiver aprovado por pelo menos uma das agências sanitárias dos EUA, União Europeia, Japão ou China

A legislação de combate à pandemia prevê a possibilidade de que uma determinada vacina seja comprada e distribuída no país sem a necessidade de autorização prévia da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A previsão abriria uma brecha para que Estados e municípios organizassem programas de imunização independentemente de eventuais ações em contrário por parte do governo federal.

O artigo 3º da Lei 13.979, aprovada em fevereiro deste ano, autoriza excepcionalmente, e em caráter temporário, “a importação e distribuição de quaisquer materiais, medicamentos, equipamentos e insumos da área de saúde sujeitos à vigilância sanitária sem registro na Anvisa considerados essenciais para auxiliar no combate à pandemia”.

A única exigência mencionada é de que os itens tenham sido registrados em pelo menos uma das quatro agências internacionais listadas no texto, sendo elas a Food and Drugs Administration (Estados Unidos), a European Medicines Agency (União Europeia), a Pharmaceuticals and Medical Devices Agency (Japão) e a National Medical Products Administration (China).

Esse dispositivo foi usado por governos locais, por exemplo, para a importação e distribuição de respiradores e testes para o diagnóstico de covid-19 ao longo da pandemia. O mesmo artigo da lei libera as autoridades a tomar outras medidas, entre as quais a vacinação compulsória, que está no centro de uma polêmica.

O texto, entretanto, é válido somente enquanto durar o estado de calamidade pública, estabelecido pelo decreto que, por enquanto, expira em 31 de dezembro deste ano. Já há em Brasília movimentos favoráveis à prorrogação do decreto, mas no momento as chances de isso ocorrer são consideradas baixas.

Governadores estão bastante preocupados com a possibilidade de o presidente Jair Bolsonaro usar sua autoridade para impedir que a Anvisa analise e libere vacinas às quais o governo tem posição contrária, como a do laboratório chinês Sinovac, desenvolvida em parceria com o Instituto Butantan, de São Paulo.

Nos bastidores, diretores da Anvisa afirmam que ainda não há pressão política sobre o órgão no quesito vacina, mas que esse cenário pode mudar quando chegar o primeiro pedido de registro. Atualmente, os cinco laboratórios que já entraram em contato com a agência estão na fase de pesquisa clínica, que precede o pedido de registro.

Normalmente, as análises da Anvisa respeitam a ordem de chegada dos pedidos, mas há uma previsão legal que dá prioridade ao governo federal em alguns casos. O Decreto 8.077, de 2013, diz que “produtos estratégicos para o Sistema Único de Saúde (SUS), conforme ato definido pelo Ministério da Saúde”, terão prioridade nas análises dos requerimentos de registro.

Baseado nesse decreto, o governo poderia, ao menos em tese, determinar à Anvisa que analisasse primeiro a vacina “preferida” de Bolsonaro. Diretores da agência acham pouco provável que eventuais pressões nesse sentido consigam interferir nas análises do corpo técnico, mas admitem que haveria amparo legal para atender primeiro a um possível pedido do presidente.

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Ação de 2015 pode indicar visão do STF sobre obrigatoriedade

Luísa Martins

26/10/2020

 

 

Tramitação desse processo está mais adiantada do que as ações de partidos políticos contra Bolsonaro

Um processo que tramita na Justiça desde 2015, e que deve ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) logo após as eleições de novembro, pode ser um teste sobre como a corte vai se manifestar sobre a obrigatoriedade da vacinação contra a covid-19 no Brasil.

O caso diz respeito a uma ação civil ajuizada pelo Ministério Público de São Paulo para obrigar um casal a regularizar a vacinação do filho. Os pais tinham ignorado o calendário estabelecido pelas autoridades de saúde por serem “adeptos da filosofia vegana e contrários a intervenções medicinais invasivas”, segundo consta nos autos.

Ao analisar um recurso do casal, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu pela obrigatoriedade da vacinação. A família acionou o Supremo, que em agosto reconheceu a repercussão geral - isto é, o entendimento a ser fixado pelos ministros valerá para todas as ações semelhantes que correm nas instâncias inferiores.

Como a tramitação desse processo está mais adiantada do que as ações recentemente ajuizadas por partidos políticos contra o presidente Jair Bolsonaro, que já se disse avesso à vacinação compulsória contra o novo coronavírus, a tendência é que esse julgamento chegue antes à pauta do plenário. Atualmente, o relator, ministro Luís Roberto Barroso, aguarda parecer da Procuradoria-Geral da República (PGR).

Nos bastidores, ministros e auxiliares ouvidos reservadamente pelo Valor ponderam que as situações não são idênticas. Isso porque, no recurso de 2015, fala-se de vacinas comprovadamente seguras, obrigatórias segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e previstas há mais de 40 anos no Programa Nacional de Imunizações (PNI).

No caso da imunização contra a covid-19, por outro lado, as circunstâncias são consideradas mais delicadas: as vacinas que estão sendo desenvolvidas ao redor do mundo ainda estão em fase de testes clínicos, de modo que ainda pairam incertezas sobre os seus possíveis efeitos colaterais e, mais ainda, sobre a sua real eficácia no combate à doença.

Apesar disso, ao julgar o recurso do caso de São Paulo, é improvável que os ministros se eximam de traçar paralelos e analogias com o atual contexto do país - que contava, até a conclusão desta edição, com quase 5,4 milhões de contaminados e mais de 157 mil mortos em razão da pandemia.

Os ministros consideram haver questões jurídicas comuns aos dois casos, como os limites das liberdades individuais quando o assunto é saúde pública - tema que ainda não é pacífico nos tribunais brasileiros.

No processo do casal de São Paulo, por exemplo, o juízo de primeiro grau considerou que os pais tinham liberdade de agir quanto à educação e à saúde dos filhos. Já em segunda instância, os chamados “movimentos antivacina” foram mencionados como causadores de “grave risco à cobertura imunológica de doenças infecciosas na sociedade”.

Ao propor que o recurso servisse de baliza a outros casos correlatos, Barroso disse que a controvérsia constitucional envolve “a definição de contornos da relação entre Estado e família na garantia de saúde de crianças e adolescentes, bem como limites da autonomia privada contra imposições estatais”.