Valor econômico, v. 21, n. 5114, 26/10/2020. Brasil, p. A5

 

Auxílio eleva a renda este ano sem deixar herança para 2021

Anaïs Fernandes

26/10/2020

 

 

Corte do benefício e desemprego anulam efeito do programa emergencial ainda em 2020

Consultorias projetam ganho expressivo na massa de renda total do Brasil em 2020, o que poderia soar contraintuitivo em ano de pandemia, com forte queda no Produto Interno Bruto (PIB) e alta no desemprego, não fosse um auxílio emergencial com volume e alcance bem superiores às transferências tradicionais. Com a redução pela metade no valor do benefício e os efeitos negativos da crise sobre o mercado de trabalho, porém, não será possível sustentar até o fim do ano o mesmo patamar de rendas de abril e maio, e, para 2021, as previsões são de queda na massa total.

Considerando apenas a massa real de renda habitualmente recebida de todos os trabalhos, a MB Associados projeta queda de 13% neste ano, com alta de apenas 1,3% em 2021. Olhando para a massa de renda total dos domicílios em 2020 - que, além do rendimento dos trabalhos, inclui transferências do Bolsa Família, benefícios do Regime Geral de Previdência Social e outras fontes (como aluguel e juros) -, a LCA Consultores prevê alta de 3,5% neste ano.

Já a Tendências Consultoria espera crescimento de 4,5% na massa de renda total em 2020, para R$ 4,21 trilhões (preços de maio deste ano). Na abertura por fontes, rendas do trabalho, que representam quase 60% do total, devem cair 2,6%, enquanto transferências do Bolsa Família avançariam 231,3%. Outras fontes subiriam 16,8%, e benefícios previdenciários, 3,9%.

A massa de renda ampliada, que rondava R$ 329 bilhões nos três primeiros meses do ano, cresceu quase 14% em abril, para R$ 373,8 bilhões, chegando a R$ 378,4 bilhões em maio, mostra relatório da Tendências. Em junho, porém, já havia recuado para R$ 358,9 bilhões e, pelas projeções, deve seguir caindo, até R$ 342,3 bilhões em dezembro.

Em um recorte regional, a consultoria prevê crescimento da massa total neste ano mais forte no Norte (16,7%) e Nordeste (13,6%), onde a informalidade e as classes de renda mais baixas estão, proporcionalmente, mais presentes e, assim, o impacto do auxílio foi maior. Nas demais regiões, a alta ficaria ao redor de 2%. Domicílios das classes D/E (renda mensal de até R$ 2.600) do Norte e Nordeste devem apresentar avanços da massa total na ordem de 40% em 2020, segundo a Tendências. Mesmo no Brasil como um todo, esse é o grupo mais beneficiado, com aumento da massa previsto em 27,1%. A classe C (ganho domiciliar mensal de R$ 2.600 a R$ 6.200) sentiria leve avanço, de 0,5%. Em 2021, porém, a massa de renda das classes D/E cairia 19%, e a da classe C, 1,7%.

Na ponta da pirâmide, a massa de rendimentos totais da classe A (renda a partir de R$ 19.200/mês) deve ter queda de 5% em 2020, enquanto na classe B (de R$ 6.200 a R$ 19.200) recuaria 2%. “Quase 30% da classe A é de empregadores, sensíveis ao PIB e à lucratividade de suas empresas”, explica Alessandra Ribeiro, sócia e diretora de macroeconomia da Tendências. Com a perspectiva de reativação da economia, a massa da classe A pode subir 3,9% em 2021, e a da classe B, 1,6%. “Tudo isso dá uma dimensão da figura e de como ela muda. Devemos ter alterações importantes do ponto de vista de renda que batem no PIB das regiões”, afirma Alessandra, pensando em 2021.

Para o ano que vem, a previsão é de “forte ressaca” na massa de renda total brasileira, segundo a consultoria. A previsão é de queda de 4,3% em 2021, para R$ 4,03 trilhões (a preços de maio de 2020). O cenário da casa considera uma expansão no Bolsa Família , ampliando os beneficiados de 14 milhões de famílias para 17,5 milhões e o pagamento médio de R$ 190 para R$ 300. “É muito menor do que aquilo que vamos ver nesse ano, o número de domicílios atendidos pelo auxílio e o custo acima de R$ 300 bilhões. Pelo nosso cálculo, seriam gastos R$ 63 bilhões. Mas é o que vemos como possível, dentro do teto de gastos, com a aprovação dos gatilhos emergenciais e certo grau de contingenciamento”, afirma Alessandra.

Para o PIB, a previsão é de queda de 5,6% neste ano - há chance de revisão para recuo perto de 5% - e alta de 2,9% em 2021. O Nordeste, no entanto, cresceria 2,4% no próximo ano, e o Norte, que conta com ajudas pontuais, como a importância da mineração e a recuperação da Zona Franca de Manaus, ficaria pouco abaixo da média nacional, com 2,7%.

“A massa de renda é um fator que limita a previsão de 2,9%”, diz Alessandra. Para a Tendências, o mercado de trabalho deve oferecer alguma sustentação incompleta. A consultoria estima queda de 7% na ocupação neste ano, com crescimento de 5,5% em 2021. “Vemos uma ativação maior de trabalhos formais, mas uma dinâmica ainda um pouco mais devagar dos informais.”

Para Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados, “a recuperação lenta no ano que vem é tanto por uma certa estagnação da renda, que não cresce pelo excesso de mão de obra disponível, como por uma recuperação muito gradual dos ocupados”.

Além dos efeitos do auxílio, Cosmo Donato, da LCA, menciona programas para redução de jornada/salário e a suspensão dos contratos neste ano. “Se você olhar para o estoque do Caged [registro de vagas formais], que ronda 38 milhões, e os dados do governo de que pelo menos 9 milhões de trabalhadores estariam sob alguma proteção, tem uma parcela ‘imobilizada’, o que pode estar deixando os desligamentos abaixo do natural, mas nada impede que, conforme a estabilidade vá acabando, haja efeitos nas demissões.”

A própria redução do auxílio já neste ano deve estimular mais pessoas a voltarem a procurar emprego, pressionando a taxa de desemprego, que deve atingir seu auge (18,5%) em março de 2021, segundo Donato. A LCA prevê queda de 2,5% na massa de renda total no próximo ano. “Você pode estar conseguindo, com as medidas, segurar a renda das famílias e o mercado de trabalho em 2020, mas o desafio ficou para 2021. Poderia até haver uma prorrogação, mas a questão fiscal está se deteriorando. Não fica muito claro quando vamos pagar toda essa conta, mas está claro que, do ponto de vista das famílias, ela não será paga em 2020, talvez o pior ainda seja o que elas vão sentir em 2021.”