Valor econômico, v. 21, n. 5114, 26/10/2020. Internacional, p. A11

 

Extensão da pandemia é uma incógnita na Venezuela

Marsílea Gombata

26/10/2020

 

 

Especialistas contestam dados do governo; ausência de testes e condições precárias de saúde agravam o quadro

A Venezuela tem alguns dos números mais baixos de infecções e mortes por covid-19 da região, o que faz o presidente Nicolás Maduro clamar eficiência no combate ao coronavírus. Mas especialistas afirmam que o país vive uma epidemia às cegas, na qual é impossível saber o número certo de casos e mortes.

Segundo dados oficiais, o país tem pouco mais de 89 mil casos e 770 mortes por covid-19. Apesar de o governo afirmar que mais de 2 milhões de testes foram realizados, em uma população de 28 milhões, estima-se que apenas 6% deles tenham sido PCR, isto é, os que detectam quem ainda está infectado, segundo informe do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (Ocha, na sigla em inglês).

A Academia de Ciências Físicas, Matemáticas e Naturais (Acfiman), em Caracas, contesta os números e afirma que o país pode ter mais de 7 mil casos diários, e não os 408 da média móvel de sete dias do site Worldometers, que é baseada nos números oficiais do governo.

Além da falta de testes PCR, o que impossibilita saber o total de infectados, só três laboratórios em todo o país processam os resultados, que podem demorar até 20 dias. Esse atraso faz com que mortos por covid-19 acabem não recebendo o resultado a tempo de serem registrados como tal, o que leva a uma grande subnotificação.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda de dez a 30 testes PCR por cada caso confirmado, mas a Acfiman estima que o ritmo da Venezuela esteja entre três e quatro por cada caso.

“Além dos problemas envolvendo testes, falta capacidade de diagnóstico clínico para exames que ajudariam a identificar possíveis casos de covid-19”, diz Jaime Lorenzo, diretor da ONG Médicos Unidos pela Venezuela (MUV). Segundo pesquisa feita pela ONG em março, 46,6% dos hospitais não tinham aparelho de raio-X.

A mesma pesquisa mostrou que a maioria dos hospitais não têm condições de tratar pacientes com suspeita de covid-19 e podem ser focos de transmissão. Mais de 35% não contam com UTI ativa, 83,1% não têm como isolar infectados e 49,8% dizem não ter condições de fazer assepsia, ou seja, deixar o ambiente livre de bactérias, vírus e outros microrganismos.

Antes mesmo da pandemia, 70% dos hospitais não possuíam água potável, 55% não tinham gerador de energia e 63% relatavam frequentes interrupções de energia elétrica, segundo o Ocha.

Soma-se a esse cenário a falta de insumos e equipamento de proteção individual, o que levou ao menos 225 agentes de saúde a morrer por covid-19, segundo a MUV. “Trabalhamos em condições não só indecentes, mas de altíssimo risco”, diz Ana Rosario Contreras, presidente do Colégio de Enfermaria de Caracas. “Em cada procedimento, o médico ou enfermeira teria que usar um par de luvas e depois descartá-lo para não gerar infecções. Mas chegamos a atender de dez a 15 pacientes com o mesmo par de luvas. No caso da máscara, deveríamos usar uma por dia, mas trabalhamos até 15 dias com a mesma.”

Contreras afirma ainda que o protocolo de aplicação de testes nos agentes de saúde a cada 15 dias não é cumprido, o que aumenta o risco de funcionários infectados contaminarem pacientes.

Com tais condições e um salário médio mensal de US$ 4,5, diz, muitos têm abandonado o trabalho. “Estamos ficando não apenas sem enfermeiros, mas também sem médicos e pessoal de limpeza.”

Hoje a maior parte de insumos, como máscaras, luvas e protetores faciais, entram na Venezuela como doações via Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), Cruz Vermelha, Caritas e ONGs como Médicos sem Fronteiras, diz Rafael Orihuela, ex-ministro da Saúde.

 Segundo ele, a Venezuela tem 26 mil leitos hospitalares, sendo 9 mil na rede pública. Em 2002, eram 46 mil, sendo 26 mil nos hospitais públicos. Na semana passada, o deputado opositor Juan Manuel Olivares disse que há 400 vagas de UTI em todo o país, sendo que 50% estão ocupadas.

“É impossível saber a verdadeira dimensão da pandemia porque o governo manipula as cifras”, afirma Phil Gunson, consultor do International Crisis Group, baseado em Caracas.

A pandemia começou a se acelerar na Venezuela em julho, quando retornaram ao país mais de 100 mil pessoas que haviam migrado para países como Colômbia, Peru e Equador nos últimos anos. Os que retornam infectados são classificados pelo governo como “bioterroristas” e têm de ficar em quarentena nos postos de atenção social integral até fazer o teste de covid-19.

Relatório recente da ONG Human Rights Watch e da Universidade Johns Hopkins, dos EUA, mostra que muitos ficam semanas além dos 14 dias recomendados pela OMS em postos “superlotados e pouco higiênicos (...), com pouco acesso a comida, água ou cuidados médicos”.

Segundo um diplomata que acompanha a situação, o governo esconde a pandemia porque pretende realizar a eleição legislativa em dezembro e quer evitar novo lockdown, o que levaria a economia a se deteriorar ainda mais. Em recessão há sete anos, a economia venezuelana deve recuar 25% em 2020, segundo o Fundo Monetário Internacional, ou mais de 37% para a consultoria Oxford Economics.

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Itália e Espanha anunciam medidas de restrição mais duras

Miles Johnson

Daniel Dombey

26/10/2020

 

 

Espanha terá toque de recolher nacional e na Itália, bares e restaurantes terão de fechar as portas até as 18h

Os governos da Itália e Espanha, países europeus mais duramente atingidos pela primeira onda da pandemia, anunciaram ontem medidas abrangentes para combater um aumento do número de novos casos de contágio.

A Itália anunciou as restrições mais duras desde o fim de primeiro “lockdown” em maio, no momento em que o número de casos de contágio atinge novo recorde diário. A Espanha terá toque de recolher nacional depois que a taxa de infecções cresceu quase um terço na última semana.

O primeiro-ministro da Itália, Giuseppe Conte, disse que a partir de hoje bares e restaurantes terão de fechar as portas até as 18h. Nas medidas propostas, que permanecerão em vigor por um mês, escolas e locais de trabalho permanecerão abertos. Academias de ginástica, piscinas, teatros e cinemas serão fechados e há “recomendação enfática” para que os italianos não saiam de casa, a não ser para estudar, trabalhar ou por motivos de saúde. “A sobrecarga ao sistema nacional de saúde alcançou níveis preocupantes”, disse Conte em um pronunciamento pela TV.

O primeiro-ministro da Espanha, Pedro Sánchez, disse que o toque de recolher nacional entre as 23h e as 6h será imposto imediatamente, seguindo pedidos de 10 das 17 regiões do país. Segundo ele, o governo ativará também o chamado estado de alerta - que concede ao governo poderes emergenciais - para permitir o toque de recolher, restrições territoriais e proibição de reuniões de mais de seis pessoas. Ele acrescentou que buscará no Parlamento nesta semana a aprovação de todos os partidos para prolongar a ordem judicial extraordinária até 9 de maio.

“Toda a Europa está agora adotando medidas para limitar a mobilidade e os contatos pessoais”, disse Sánchez. “Nunca antes enfrentamos nada parecido ”.

Sánchez invocou um estado de alerta em março, em resposta à primeira onda da covid-19. Mas a medida caducou em junho e, depois, ficou cada vez mais difícil conseguir apoio do Parlamento. Algumas das regiões do país pressionaram para a suspensão das restrições. O premiê espanhol acrescentou que o governo tenta evitar outro “lockdown”, mas pediu aos cidadãos que permaneçam em casa o máximo de tempo possível.

Na Itália, Conte insistiu que não haverá novo “lockdown” nacional, apesar do aumento dos diagnósticos de novos casos nas duas últimas semanas. No sábado foram registrados 19,6 mil novos casos em 24 horas, mais um recorde diário, com a morte de 151 pessoas.

Enquanto Conte realizava uma reunião de governo no sábado, um pequeno grupo de manifestantes, alguns deles ligados a grupos neofascistas, disparou fogos de artifício contra a polícia na Piazza del Popolo, no centro de Roma, no sinal mais recente de agitação social provocada pela possibilidade de novas restrições.

Na noite de sexta-feira, houve protestos violentos em Nápoles, depois que o governador de Campania, região onde fica essa cidade, disse que o aumento de casos significa que seu governo regional terá de impor novas medidas de quarentena. “Precisamos fechar tudo, com exceção das empresas que produzem e transportam bens essenciais”, disse Vincenzo De Luca em comentários que provocaram os protestos. “Estamos à beira de uma tragédia”, disse ele.

De Luca pediu ao governo nacional para impor uma “zona vermelha” ao redor de Nápoles, impedindo a movimentação para dentro e fora da cidade. O número de casos no sul da Itália aumentou muito na semana passada, elevando temores de que o sistema público de saúde possa ter dificuldades.

Na primeira onda de contágios, o sul da Itália, mais pobre, foi poupado de surtos mais significativos. Mas, agora a região da Campania se transformou em uma das áreas mais duramente atingidas.