Título: As sombras da pedofilia
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 02/03/2013, Mundo, p. 16

O pontificado de Bento XVI se encerra em meio à avalanche de denúncias contra sacerdotes acusados de abusar sexualmente de menores

Ao encerrar seu pontificado, na histórica tarde de quinta-feira, Bento XVI deixou para a sucessor o espinhoso tema das denúncias de abusos sexuais praticados por sacerdotes contra menores de idade. O agora papa emérito bem que gostaria de levar o assunto com ele para a reclusão e livrar a Igreja Católica. Mas o afastamento de um cardeal, às vésperas do conclave, em meio a denúncias de "comportamento inadequado", mostrou que as sombras da pedofilia se projetam sobre o alto escalão da Cúria Romana. De acordo com analistas consultados pelo Correio, o escândalo, que começou a ser revelado nos últimos anos de papado de João Paulo II, tomou as proporções de uma avalanche sob Joseph Ratzinger. Mas, para eles, embora não possa apagar essa marca de seus oito anos à frente da Santa Sé, Bento XVI será lembrado como o pontífice que confrontou o problema.

A saída do cardeal escocês Keith O"Brien, no último dia 25, trouxe o tema de volta aos holofotes em meio aos preparativos para a transição no Vaticano. O"Brien, arcebispo de Edimburgo, foi acusado de abusar sexualmente de seminaristas nos anos 1980. O Vaticano alega que o papa apenas aceitou a renúncia do cardeal, mas informações de bastidores citadas pela imprensa internacional apontam que a decisão teria partido da Santa Sé, em uma tentativa de conter o escândalo.

Nos Estados Unidos, onde processos movidos por vítimas de abuso custaram milhões de dólares aos cofres diocesanos, um influente grupo de católicos está em campanha para impedir que o arcebispo de Los Angeles, dom Roger Mahony, participe do conclave. Ele é acusado de acobertar casos de pedofilia envolvendo religiosos sob sua autoridade. Pelo mesmo motivo, também está sob questionamento a participação do cardeal mexicano Norberto Rivera Carrera na eleição do novo papa.

Perdão

O envolvimento do alto clero é o ápice de uma crise que se arrastou pelos quase oito anos de pontificado de Bento XVI, chamado a intervir com urgência. O pontífice desculpou-se com vítimas em vários países, enviou uma histórica carta com pedido de perdão à Irlanda, foco de denúncias recorrentes, e prometeu punição para os acusados. Ainda assim, foi criticado reiteradas vezes. Para a diretora do Departamento de Sociologia da Universidade de New Hampshire, Michele Dillon, o agora papa emérito será lembrando como alguém que tentou seu melhor para enfrentar o problema, mesmo antes ascender ao trono. Mas, na avaliação da especialista, ele foi contido pela visão dominante na Igreja — segundo a qual a melhor maneira de lidar com a questão é "varrê-la para debaixo do tapete".

Para o professor de comunicação Brian Kaylor, da James Madison University, Ratzinger, ainda como cardeal, pressionou por respostas mais até que João Paulo II. Mas, apesar de levar as alegações mais a sério do que seu predecessor, Bento XVI será lembrado também com críticas. "Muitos, dentro e fora da Igreja, acreditam que ele deveria ter agido mais agressivamente para punir os predadores sexuais e encorajar ações civis contra eles", afirma o especialista em retórica político-religiosa. No entanto, segundo Kaylor, seu legado dependerá de como o próximo pontífice lidar com o tema. "João Paulo tornou-se incrivelmente popular após a morte, e Bento tem lutado para sair de sua sombra. Mas acho que sua reputação aumentará, no futuro, quando observadores notarem como ele abordou a crise com mais seriedade do que João Paulo."

Os especialistas são unânimes em creditar sinceridade ao pedido de desculpas feito às vítimas de abuso. "É difícil imaginar alguém com um coração tão frio que não sinta pena e indignação quando confrontado com o abuso de crianças, especialmente em grande escala", afirma o professor Joe Radwan, do Departamento de Comunicação e Artes da Seton Hall University. "Bento XVI não é um sociopata calculista que atuou apenas para tentar reparar a imagem pública da Igreja", completa Radwan, especialista em retórica papal.