Valor econômico, v. 21, n. 5117, 29/10/2020. Especial, p. A22

 

Nova meta climática do Brasil terá impacto no acordo UE-Mercosul”

Daniela Chiaretti

29/10/2020

 

 

Sinal que o país fizer ao divulgar sua nova meta no Acordo de Paris pode repercutir nos avanços em torno da ratificação do tratado, diz Yvon Slingenberg, diretora de Ação Climática da Comissão Europeia

A agenda global climática e a comercial estão cada vez mais próximas. O sinal que o Brasil fizer ao divulgar sua nova meta no Acordo de Paris pode repercutir nos avanços em torno da ratificação do acordo União Europeia-Mercosul. “Não é só a comunidade ambiental que têm que se preocupar com isso”, recomenda Yvon Slingenberg, diretora de Ação Climática da Comissão Europeia, o braço executivo da União Europeia.

A advogada holandesa atuou nas negociações climáticas internacionais, tornou-se especialista no sistema europeu de comércio de emissões de carbono e também em políticas de adaptação e resiliência à mudança do clima do bloco. Hoje Yvon ajuda a estruturar a transição do continente para a descarbonização até 2050, o “Green Deal” europeu. O esforço é simultâneo à retomada da economia. “Qualquer ação que tomarmos agora para sair da pandemia terá que apoiar a transição verde.”

A transição da sociedade europeia “vai custar muito dinheiro, não estamos negando. Mas vamos colocar muitos recursos para colocar a economia de volta nos trilhos e, ao mesmo tempo, para a transição verde”, diz. Boa parte dos recursos será investida na “transição justa”, ou seja, no apoio às pessoas e às regiões europeias mais afetadas pela mudança, como as ligadas à exploração de carvão.

Há boas oportunidades para o Brasil na aposta energética da Europa, o hidrogênio, que deve ser produzido a partir de renováveis, e não combustíveis fósseis, diz ela.

Yvon Slingenberg detalhará o andamento do “Green Deal” europeu no encontro de hoje dos governadores, como palestrante-convidada. Ela falou ao Valor de sua casa, em Bruxelas, onde trabalha durante a pandemia. A seguir, trechos da entrevista:

Valor: Qual a importância do evento com os governadores?

Yvon Slingenberg: Estou feliz com este encontro porque a troca é importante. Vamos compartilhar a perspectiva europeia de como trabalhamos no nível municipal com os Estados-membros. Muito da transição verde tem que ocorrer via ações dos governos locais.

Valor: Como está caminhando o “Green Deal” europeu?

Yvon: Nossa abordagem para a transição em direção a uma sociedade próspera, de baixo carbono e resiliente, com todo o choque que experimentamos com a covid, é que todas as políticas e todas as ações têm que apoiar esta transição. Um ano depois de termos anunciado o “Green Deal”, estou encorajada pelo fato de estarmos muito determinados a seguir por este caminho mesmo com a pandemia. Os líderes europeus têm dito que qualquer ação que tomarmos agora para sair da pandemia terá que apoiar a transição verde. Negligenciamos por muito tempo o que a deterioração ambiental pode causar a todos. Junto a esse esforço também estamos trabalhando na transição digital.

Valor: Os dois movimentos se complementam?

Yvon: Muitas ações que miram a digitalização da sociedade também podem ajudar na transição verde. Um exemplo típico é o dos medidores inteligentes de energia. Outro é na indústria, em ter mais eficiência nos processos. Pode haver um esforço combinado entre a transição verde e a digital.

Valor: As políticas europeias convergem agora na mesma direção?

Yvon: Mais de um terço dos recursos da retomada econômica será dirigido a ações climáticas específicas. Isso está combinado com a decisão que o restante do dinheiro não pode ir na direção contrária. O que não for dirigido diretamente para clima não pode mais financiar combustíveis fósseis.

Valor: Pode dar exemplos da experiência europeia?

Yvon: As reformas dos prédios, por exemplo. Isso ajuda imediatamente os empregos e também pode criar empregos de qualidade, pensando na digitalização. Acabamos de lançar uma estratégia neste campo, a “Renovation Wave” para trabalharmos com os Estados-membros, e eles, com suas cidades. Outra frente é promover uma agricultura mais sustentável. E há iniciativas em relação ao hidrogênio.

Valor: Pode dar detalhes sobre a estratégia de hidrogênio?

Yvon: Estamos trabalhando em parcerias com indústrias. Os investimentos terão que ser grandes, mas, se combinarmos recursos da UE com recursos nacionais e do setor privado, podemos dar impulso no desenvolvimento desta tecnologia e começar projetos-piloto.

 Valor: Há muito sol no Nordeste do país e bons ventos também. Há oportunidades para o Brasil?

Yvon: Sim. Estamos muito interessados em ter parceiros em novas tecnologias e em hidrogênio, particularmente. Na Espanha, que tem sol ilimitado, discutimos como avançar com a produção de hidrogênio a partir de renováveis. No norte da Holanda havia muito gás e o governo decidiu ir eliminando esta fonte de energia. Vem investindo muito em parques eólicos na região, que está se colocando como “o vale do hidrogênio do norte da Europa”. É uma perspectiva nova e promissora para regiões que dependiam de combustíveis fósseis. O Brasil tem grande potencial em energias renováveis.

Valor: A transição verde exigirá muito investimento?

Yvon: Vai custar muito dinheiro, não estamos negando. Mas, ao mesmo tempo, vamos colocar muitos recursos agora para colocar a economia de volta aos trilhos e gerar empregos. Esse dinheiro que já estava acertado antes da covid-19 vai ajudar na transição. Temos o contexto terrível da pandemia, mas temos de outro lado recursos que podem ajudar na descarbonização da economia.

Valor: Em Amsterdã, o metrô é movido a partir da queima do lixo da cidade. Muito pode ser feito no plano local, não é?

Yvon: Muito. Mobilidade é um tema crucial. Se há necessidade de investir em transporte público, em como carregar veículos elétricos, em fortalecer o sistema ferroviário, são decisões excelentes e que podem ajudar nos dois caminhos, na retomada e na transição verde.

Valor: Estamos às vésperas da eleição nos EUA. Se o democrata Joe Biden vencer, promete descarbonizar a economia até 2050. O Japão, está neste rumo, a China sinaliza também. Como esses movimentos podem redesenhar o mundo?

Yvon: Consideramos esses movimento extremamente positivos. Quando nos comprometemos com a neutralidade em carbono, dissemos claramente que não basta a Europa fazer isso sozinha para que os perigos da mudança climática desapareçam. Outros têm que seguir. Mas estamos determinados a liderar pelo exemplo. É muito bom ver quão rápido avanços em novas tecnologias estão ocorrendo, o custo das renováveis reduzindo. A mudança do clima não é impedimento ao crescimento econômico. É o contrário. Os países estão se dando conta de que, se não entrarem nesta rota, estarão perdendo vantagens competitivas que podem tornar economias prósperas. É o que as pessoas estão pedindo na Europa. Quanto mais grandes emissores tivermos a bordo, mais teremos escala, a transição será mais barata e cumpriremos as metas do Acordo de Paris.

Valor: Os atores locais e as empresas podem fazer a roda andar?

Yvon: Sim. É muito encorajador ver governos locais e o mundo dos negócios reconhecendo que esse é o caminho a seguir. Estamos ansiosos em cooperar de perto com o Brasil, esperando também ter uma cooperação construtiva no nível federal. Na Europa, nos últimos anos, construímos uma governança de múltiplos níveis para esta transição. E queremos investir em uma transição justa.

Valor: O que isso quer dizer?

Yvon: Pessoas podem se sentir ameaçadas em seus trabalho e em sua vida com a transição. Elas têm que ser incluídas. Temos que ver quais medidas de apoio e novos treinamentos têm que ser feitas. A transição pode ter muitas implicações negativas para os setores ligados ao carvão e empresas como as fabricantes de automóveis. Transição justa é reconhecer que há setores da economia e da sociedade que dependem de combustíveis fósseis. É preciso treinar essas pessoas. Criamos um mecanismo para isso. Há um fundo com recursos que podem vir do setor privado e de bancos de investimento, combinado a um processo em que se olha com lupa setores e regiões especiais. Em algumas regiões da Europa, a transição será mais difícil e ali teremos que dar apoio adicional.

Valor: Como correm as discussões sobre a criação de uma taxa de carbono de fronteira?

Yvon: Na Europa temos o ETS, o comércio de emissões de carbono, que cobre o setor energético e indústrias de cimento, siderúrgicas, fertilizantes, vidro, celulose. Como elas têm que pagar pelas suas emissões, sempre fomos conscientes do fato de que isso poderia levá-las a deixar a Europa. Tentamos evitar o “vazamento de carbono”. E é aí que o conceito de ajuste de carbono começou a se formar. Ainda estamos desenvolvendo o conceito e olhando para custos e benefícios de cada opção. A proposta será feita no verão de 2021 e possivelmente implantada em 2023.

Valor: As agendas comercial e climática estão cada vez mais relacionadas.

Yvon: Sim. No caso da UE estamos convencidos de que temos que deixar essas mensagens muito claras em todas os nossos diálogos políticos e também nas nossas relações comerciais. Na Europa, com a transição, a demanda por produtos irá ser impactada. Vamos exigir das empresas saber que tipo de produtos estão comprando e qual o seu impacto não só na Europa, mas também fora. Não é só a comunidade ambiental que têm que se preocupar. Temos que ter debates abertos, porque isso vai afetar a todos. Estamos tendo boas discussões com nossos parceiros africanos, do que isso significará para as economias deles. O mesmo queremos ter com o Brasil.

Valor: Qual a expectativa em torno do acordo UE-Mercosul?

Yvon: Todos os Estados-membros têm de ratificar o acordo. E isso está em discussão. Na comissão estamos positivos com o resultado do acordo, mas as pessoas estão preocupadas se o que foi acertado no papel está realmente sendo implementado. Como, por exemplo, os lados vão implementar o Acordo de Paris totalmente. Há dúvidas a esse respeito. Nos Parlamentos estão sendo discutidos o que se vê sobre o desmatamento na Amazônia e as políticas do governo federal. Ter discussões abertas sobre esses temas, entre a Europa e países do Mercosul, é o melhor para o processo de ratificação e para eliminar as suspeitas e dúvidas. Vemos mais abertura do lado brasileiro para discutir a situação da Amazônia. Isso é muito bom.

Valor: A nova meta climática do Brasil será importante também para o acordo? Será um sinal?

Yvon: Diria que sim. Qualquer sinal que vier do Brasil em termos de aumentar a ambição e como planeja implementar isso, melhor será. Aceitamos que haja diferentes velocidades e ênfases. O Brasil fez muito em termos de energias renováveis. Talvez o desafio seja mais nas florestas e em transporte, podemos intensificar a cooperação nesses fronts.