Valor econômico, v. 21, n. 5118, 30/10/2020. Brasil, p. A6

 

‘Inflação da pandemia’ está abaixo do IPCA, calcula Ibre

Anaïs Fernandes

30/10/2020

 

 

Resultado indica que aumento do consumo de bens essenciais, como alimentos, não tem sido suficiente para compensar forte queda na demanda por serviços

A mudança nos hábitos de consumidores no Brasil e no mundo durante a pandemia tem levado especialistas a questionar se os índices tradicionais de inflação estão refletindo o comportamento real da cesta de consumo ou se os indicadores estão subestimados. Pesquisadores do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre/FGV) construíram uma medida alternativa de inflação ao consumidor para tentar captar essas mudanças e, para surpresa deles, descobriram que a “inflação da pandemia” no Brasil está, na verdade, 0,18 ponto percentual abaixo do índice oficial, um indicativo de que o aumento do consumo de bens essenciais, como alimentos, não tem sido suficiente para compensar a forte queda na demanda por serviços.

Enquanto o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), do IBGE, sobe 0,24% no acumulado de março a agosto, o Índice de Preços ao Consumidor-Contas Nacionais (IPC-CN), do Ibre, avança apenas 0,05%. “Pelos nossos cálculos, contrariando as expectativas, ela [a inflação calibrada] não foi tão alta”, diz André Braz, economista do instituto e um dos autores do estudo. Isso ocorre porque, de março a maio, no pior período de restrição social e quando houve deflações, o IPC-CN caiu só um pouco menos que o IPCA (-0,56%, contra -0,62%) e, a partir de junho, com a volta das atividades, o índice oficial subiu mais (0,62% do IPC-CN entre junho e agosto, ante 0,86% do IPCA).

A chave para entender o comportamento dos índices está na formação dos pesos de seus itens. No IPC-CN, a cesta foi calibrada com base nas estimativas mensais do consumo das famílias, feitas pelo Monitor do PIB, do Ibre, a partir das Contas Nacionais do IBGE. Os pesos de bens e serviços do IPCA são balizados pela Pesquisa de Orçamentos Familiares (atualmente a POF 2017-2018), realizada a cada cinco anos ou mais, com 12 meses de coleta. O peso dos itens no IPCA até pode mudar um pouco, mas por ajustes nos preços, já que as quantidades são fixadas pela POF. O índice a partir das Contas Nacionais, embora use uma fonte menos detalhada que a POF, permite observar, no agregado dos principais grupos, alterações tempestivas nos padrões de consumo, já que capta mudanças nas quantidades compradas. “As Contas Nacionais, como têm atualização trimestral, são mais dinâmicas, a POF é estática”, afirma o economista do Ibre.

Um exemplo claro dessa diferença é observado nos alimentos. Entre março e agosto, o comprometimento da renda com alimentação no IPC-CN passou de 14,2% para 17% do total. No mesmo período, o peso dos gêneros alimentícios no IPCA variou pouco, de 13,45% para 14,07%. Em contrapartida, só a queda no peso de educação, leitura e recreação no IPC-CN (de 17,9% para 14,7%) foi quase tão intensa quanto o ganho de alimentação.

Com a estrutura de ponderação obtida a partir das Contas Nacionais e utilizando as variações dos subitens do IPCA, os pesquisadores estimaram o IPC-CN. Analisando a taxa acumulada a partir de março, eles observaram que o índice registrava inflação cada vez maior conforme as medidas de isolamento avançavam. Até abril, ambos os indicadores tiveram deflação de 0,24%. Até maio, a queda do IPCA era de 0,62%, contra retração de 0,56% do IPC-CN. Até junho, o IPCA recuou 0,36%, e o IPC-CN, 0,10%. Houve queda em ambos os índices, sobretudo, pelo recuo nos combustíveis, mas o peso da alimentação foi deixando o IPC-CN cada vez menos negativo, explica Braz. O auge da diferença foi no acumulado até julho, quando o IPCA não variou, mas o IPC-CN subiu 0,26%.

“À medida que agosto chega e há um afrouxamento das restrições, o peso de alguns segmentos da alimentação reduz. Dos 17 itens considerados, 11 perderam peso em relação a julho. Então, mesmo que a alimentação continuasse a subir, isso compensou”, diz Braz. Em agosto, o IPC-CN caiu 0,21%, enquanto o IPCA subiu 0,24%. A queda em preços de serviços importantes para o orçamento familiar construído a partir das Contas Nacionais também ajudou. O grupo educação, leitura e recreação, por exemplo, recuou 3,56%.

“O que vimos é que mesmo a inflação dos alimentos tendo subido, mesmo ganhando peso no orçamento, não foi suficiente por causa da reação contrária em outras despesas”, diz Braz. “Com a flexibilização do isolamento, a ponderação do IPCA começou a prevalecer e mostrar uma volta à normalidade, o que é importante porque isso também tem gerado dúvidas: o que vai ficar de permanente? Tudo será transitório? Muitas empresas podem manter o ‘home office’ e isso pode afetar, por exemplo, a refeição fora do domicílio e o uso de transporte público”, observa o economista.

Por isso, Braz diz que, a partir de 2022, quando o “saldo” das mudanças da pandemia estiver mais claro, seria importante atualizar a POF. A equipe do Ibre reforça que a qualidade de uma estatística está na coerência temporal e, por isso, modificar os pesos do IPCA a cada instabilidade seria ruim. Mas indicadores alternativos como o IPC-CN podem ajudar na análise de políticas públicas e econômicas.

Com preços aos produtores acelerando em grandes commodities agrícolas e a depreciação cambial presente, a expectativa é que a cadeia de produtos derivados volte a pressionar os preços aos consumidores no último trimestre do ano, o que já foi captado pelo IPCA e o IPC/FGV em setembro, diz o Ibre. Assim, é possível que o IPC-CN suba mais do que o IPCA nos últimos meses de 2020, e ambos os índices poderão encerrar acima de 2,9%.

“Estamos ansiosos para ter os números de setembro e outubro para ver, com a pressão mais recente de alimentos, qual será o destino dos índices. As escolas estão tendendo a voltar, então os descontos vão sumir; a passagem aérea começa a retornar também. Mas a variável que a gente não controla é o peso que vai aparecer nas Contas Nacionais. Não temos dúvidas de que os preços dos alimentos vão subir, mas e as quantidades? Acho que o IPC-CN vai rivalizar bem com o IPCA, mostrando normalização e apontando tendência similar”, afirma Braz. O estudo pondera que os resultados do IPC-CN são preliminares, já que as Contas Nacionais são revisadas trimestralmente e a cada ano seguinte.