O globo, n. 31832, 01/10/2020. Economia, p. 19

 

Novo impasse

Manoel Ventura

Geralda Doca

Marcello Corrêa

01/10/2020

 

 

Guedes descarta uso de precatórios, e governo busca alternativa para programa social

 Dois dias depois de apresentar sua proposta para financiar o Renda Cidadã, que deve substituir o Bolsa Família, o governo volta a viver um impasse em torno da criação do programa social e busca novas fontes de recursos para bancá-lo. Após areação negativado mercado financeiro à proposta, o ministro da Economia, Paulo Guedes, descartou o uso de precatórios, dívidas já reconhecidas pela União, para custear o projeto, que deve funcionar como a política de auxílio aos vulneráveis após o fim do auxílio emergencial, no fim do ano. Segundo o ministro, o programa de transferência de renda não pode ser financiado com “puxadinho”.

— Nós temos que aterrissar esse auxílio emergencial em um programa social robusto, consistente e bem financiado. Financiado, como é uma despesa permanente, financiado por uma receita permanente. Não pode ser financiado com puxadinho, por um ajuste, não é assim ques e financia o Renda Brasil.Écomre ceitas permanentes—criticou Guedes.

As declarações do ministro foram feitas após uma reunião com Bolsonaro e integrantes do núcleo duro do Planalto. No encontro, ficou acertado que o governo aceitaria propostas da área econômica para rever o financiamento ao novo programa social.

SOLUÇÃO ‘MAIS SUAVE’

Segundo interlocutores que participaram dessa reunião, a ideia seria adotar algo “mais suave e palatável” para o mercado, mas qualquer tipo de raciocínio “para inverter o jogo tem que partir da Economia”. À noite, Guedes levou o secretariado para outra reunião no Palácio do Planalto, com ministros e lideranças governistas, como o deputado Ricardo Barros (PP-RR), líder do governo na Câmara. Todos saíram sem dar declarações.

Nessa reunião, ficou decidido que o texto da proposta de emenda à Constituição (PEC) Emergencial que viabiliza o Renda Cidadã será alterado, segundo fontes a par das discussões. Ainda não há informações, no entanto, sobre o que será efetivamente alterado no relatório do senador Marcio Bittar (MDBAC), vice-líder do governo e relator da PEC. O senador defendeu publicamente a proposta de uso de precatórios e de recursos do Fundeb, destinado à educação básica. O uso do Fundeb, porém, também já foi descartado por integrantes do governo.

A situação representa uma reviravolta para a equipe econômica. A proposta originalmente formulada pela pasta previa a unificação de programas sociais e medidas que enfrentariam mais resistência no Congresso, mas foi recusada pelo presidente Jair Bolsonaro. Na segunda, o governo apresentou uma alternativa formulada pela ala política, coma presença de Guedes no evento. Após a repercussão negativada proposta entre economistas e mercado financeiro, por ter sido interpretada como uma pedalada ou um sinal de contabilidade criativa, o governo volta abuscar recursos para um programa considerado essencial do ponto de vista de auxílio da população, manutenção do consumo após um ano de forte crise e para a popularidade do presidente antes da eleição.

Ontem, Guedes defendeu o controle de gastos com precatórios, mas não para bancar uma despesa permanente. Ele disse que fazia a declaração para “baixar o barulho”, em referência às críticas de agentes econômicos e políticos à proposta original para o Renda Cidadã, que previa também o uso de recursos do Fundeb. Guedes fez um alonga fala, sem respondera perguntas de jornalistas, após aparecer de surpresa numa entrevista à imprensa de técnicos do ministério sobre o resultado da geração de empregos em agosto.

—O programa Renda Brasil não tem nada a ver como auxílio emergencial. ORendaBra si léu ma consolidação de 27 programas e, possivelmente, com fontes adicionais que possam alimentar uma despesa sustentável. Não se trata de buscar recursos para financiar isso, muito menos os recursos de uma dívida que já transitou em julgado e que é líquida e certa. Nós não faremos isso. Nós estamos aqui para honrar compromissos. Compromisso fiscal, compromisso de dívida, tudo isso será honrado —disse o ministro ontem, sempre chamando o programa de “Renda Brasil”, e não de “Renda Cidadã”, como outros integrantes do governo e do Congresso o batizaram.

Versão preliminar da PEC que viabiliza o Renda Cidadã, à qual O GLOBO teve acesso, previa a limitação ao pagamento de precatórios em artigo que trata das regras de pagamento destas dívidas. Mas não havia uma vinculação formal entre a economia resultante dessa rolagem de débito se o financiamento do programa.

Segundo fontes, é próxima de zero a chance de o ministro aceitar algum artifício para usar os precatórios para custear o programa. A alternativa, porém, ainda não está clara.

JUNÇÃO DE PROGRAMAS

Publicamente, ontem, Guedes voltou a defendera junção de programas sociais para financiar o substituto do Bolsa Família, mesmo após ove todo presidente Jair Bolsonaro a propostas nesse sentido porque implicariam o fim de alguns benefícios. A proposta preferida de Guede sé a que junta programas sociais já existentes, como Bolsa Família, seguro-defeso (pago a pescadores) e abono salarial. Por outro lado, Bolsonaro já colocou entraves ao debate sobre esse tipo de reformulação, pois não admite“tirar do pobre par adar ao paupérrimo”.

Apesar de sinalizar ser contra o uso de precatórios para financiar o Renda Cidadã, o ministro defendeu passar um pente-fino nessa despesa. Os precatórios são dívidas da União reconhecidas pela Justiça cujos credores aguardam o pagamento. Para Guedes, “aparentemente há uma indústria de precatórios no Brasil”, porque essa despesa, segundo ele, saiu de R$ 10 bilhões no governo Dilma Rousseff para R$ 54 bilhões na gestão Bolsonaro.

— É um crescimento galopante. Estamos examinando com foco em controle de despesa. Sabemos que precatórios são dívidas líquidas e certa, transitadas em julgado. Ninguém vai botar em risco a liquidação do governo brasileiro. O governo vai pagar tudo. Agora, o governo tem que examinar quando tem despesas crescendo explosivamente. Não para financiar programas, porque aquilo não é fonte saudável, limpa, permanente, previsível. É natural que tenha mosque passar alupa em todos os gastos para evitar propostas de romper teto —disse.

Guedes também disse que o compromisso com as reformas permanece e que o Ministério da Economia não está se desviando dos seus programas. E reforçou o compromisso com o teto de gastos, regra que limita o crescimento das despesas da União.

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Maia e Guedes batem boca em torno da agenda econômica

Manoel Ventura

Gabriel Martins

01/10/2020

 

 

Ministro diz que parlamentar teria feito acordo contra privatizações. Deputado chama titular da Economia de 'desequilibrado'

 Durante a apresentação dos dados do emprego formal em agosto, o ministro da Economia, Paulo Guedes, fez críticas ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Segundo ele, que apareceu de surpresa no anúncio dos resultados, o deputado teria feito um acordo coma esquerda paranã o pautaras privatizações. O comentário foi feito um dia depois de o parlamentar usar as redes sociais para pressionar o ministro a apresentar a segunda etapa da reforma tributária ao Congresso. O imbróglio continuou ontem, e Maia rebateu chamando Guedes de “desequilibrado”.

—Não há razão para parar as privatizações. Há boatos de que haveria acordo do presidente da Câmara com a esquerda paranã o pautar as privatizações. Nós precisamos retomar as privatizações, temos que seguir com as reformas, temos que pautar todas essa transformação que queremos fazer —afirmou Guedes.

Na terça-feira, após o anúncio de que não haveria acordo para apresentar a reforma tributária, Maia usou as redes sociais para provocar Guedes:

“Por que Paulo Guedes interditou o debate da reforma tributária?”, escreveu o parlamentar.

Ontem, após a crítica pública feita pelo ministro, Maia rebateu:

— Paulo Guedes está desequilibrado e deveria assistir ao filme “A Queda” —disse Maia, em referência ao longa que narra as últimas horas de Adolf Hitler na Alemanha nazista.

Guedes, que apareceu sem anúncio na entrevista sobre o desempenho do mercado de trabalho, não respondeu a perguntas de jornalistas e defendeu o papel da infraestrutura e das concessões como caminho para a retomada da trajetória de crescimento.

— A retomada do crescimento vem pela aceleração de investimentos em cabotagem, infraestrutura, logística, setor elétrico, privatizações, Eletrobras, Correios, estamos esperando. Temos o Banco Central independente —disse.

Até agora, o governo só enviou ao Congresso a privatização da Eletrobras, que encontra resistências da sua própria base aliada. A privatização dos Correios, por exemplo, citadapelo ministro, não foi formalmente proposta.

No mercado financeiro, após a turbulência causada pela proposta de financiamento do Renda Cidadã no começo da semana, o desempenho foi ditado pelo cenário externo e pelas falas de Guedes descartando o uso de precatórios para custear o programa social. A Bolsa encerrou o pregão e malta de 1,09%, aos 94.603 pontos. A Bolsa fechou setembro com queda acumulada de 4,8%, o pior desempenho desde o início da pandemia.

Apesar do avanço nos negócios ontem, um analista, que pediu para não ser identificado, destacou que a relação belicosa entre autoridades, em momento de crises global e interna, atrapalha a visão do Brasil frente ao investidor estrangeiro, o que dificulta ainda mais a entrada de recursos.