Título: Vozes e gestos dos herdeiros
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 09/03/2013, Mundo, p. 16

"Não houve líder na história da pátria mais vilipendiado, atacado e injuriado. Perdoamos os que o injuriaram. Que você esteja livre de toda a culpa que trataram de lhe impor", declarou ontem Nicolás Maduro, ainda como vice-presidente da Venezuela, ao pedir licença à família de Hugo Chávez e realizar um emocionado discurso diante do caixão. Antes mesmo de tomar posse como presidente interino, Maduro usava a imagem do governante falecido para desconstruir a oposição e agregar votos para a eleição que disputará em abril — em data ainda a ser definida.

Se depender dos gritos de milhares de chavistas que enfrentaram mais uma vez o calor escaldante para se despedir do comandante, Maduro tem apoio garantido pelo menos até enfrentar as urnas. A 500m do Salão de Honra Libertador Simón Bolívar, na Academia Militar de Caracas, a multidão exercitava a paciência. Muitos tinham atravessado a madrugada na fila. "Chávez vive, a luta segue!" e "Chávez, Maduro, o povo está seguro!" eram as palavras de ordem.

Um pouco mais afastado do alarido, e sob condição de anonimato, um taxista admitia o temor da instabilidade política e de disputas no campo governista. "Se Maduro e (Diosdado) Cabello (presidente da Assembleia Nacional) romperem e cada um fundar seu próprio partido, será o fim do chavismo", alertou ele, que trazia no carro uma faixa com as cores da bandeira nacional. "Por aqui, ninguém gosta de Cabello, que enriqueceu durante o governo Chávez", acrescentou. O motorista lembrou que também a oposição tem dificuldades. "Estão fragmentados, repletos de facções que não se entendem", disse.

No velório, Maduro deixou-se fotografar com Cabello ao lado do caixão, uma demonstração de coesão nas filas do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV). Em toda a extensão do Paseo de Los Próceres — uma grande avenida que desemboca na principal zona militar da capital —, as homenagens parecem ter a clara intenção de capitalizar o sofrimento da população e a idolatria a Chávez para garantir a vitória de Maduro.

"No curto prazo, Maduro e Cabello manterão a aliança por interesses do governo. Eles têm consciência de que, caso se dividam, perderão as eleições e o poder", explica o cientista político e opositor Tony De Viveiros. "Apesar dos apetites de cada grupo dentro do chavismo, prevalecerá o utilitarismo. Eles cederão em aspirações pessoais", arrisca. Segundo ele, um racha no PSUV provocaria o surgimento de facções que disputarão o legado de Chávez. "Passaríamos do chavismo monolítico a vários chavismos, como aconteceu com o peronismo, na Argentina", prevê.

Juras de união

Militantes do PSUV, ao contrário, apostam que a morte de Chávez reforçará a unidade. "Estamos com a revolução, todos somos Chávez. Lutaremos e viveremos na revolução", prometeu a aposentada Julia Rodríguez, 76 anos, que esperou cinco horas em pé para ver o corpo do líder, às 3h de ontem. "Para nós, Chávez é tudo. É o comandante, o presidente, o amigo, o amor, a paz, a harmonia, tudo", afirmou ao Correio, com a voz embargada.

Filha de brasileiro com venezuelana, Elvadina Gómez, 69, aplaudiu a decisão de Maduro de embalsamar o corpo do líder bolivariano. "Fiquei encantada. Dessa forma, as novas gerações poderão saber quem foi Chávez", comentou. Mas também teme pelo futuro da revolução sem o caudilho: "Ninguém é igual a ninguém. A cada 500 anos renuncia um papa, e a cada 500 anos nasce um homem como Chávez, o libertador do século 21."

Indígena da etnia guayú, Carmén González tatuou uma foto do presidente no lado direito da face. Ao lado do filho Godofredo, 3 anos, ela se mostrou incomodada com o mercado de souvenires. "As pessoas vendem fotos dele e empanadas. Viemos com lágrimas e com dor e temos que respeitá-lo", desabafou. No mesmo tom, Ana Zambrano, 48, funcionária do Ministério Popular da Saúde, exibia com orgulho um cartaz com os dizeres "Chávez no Panteão junto com Simón (Bolívar)". "Ele é o segundo Bolívar. Estou muito triste, mas continuaremos com a revolução. O legado de Chávez é unidade, unidade e unidade", defendeu.

Morador do departamento de Miranda — terra do opositor Henrique Capriles —, Ronan Ríos se graduou e conseguiu uma casa graças ao presidente e às missões bolivarianas. Decidiu agradecer a Chávez e entrou na fila da despedida ao meio-dia de quinta-feira. Na tarde de ontem, ainda faltavam cerca de 500m para que ele entrasse na Academia Militar. "O comandante nos deixou legado e um candidato que precisamos apoiar. Vamos fazê-lo, por amor a ele, era seu último desejo", comentou.