O globo, n. 31833, 02/10/2020. Mundo, p. 21

 

Novas complicações

02/10/2020

 

 

UE processa Reino Unido contra lei que permite mudança unilateral do Brexit

 A União Europeia (UE) anunciou ontem que decidiu iniciar um processo legal contra o governo do Reino Unido por causa do projeto de lei que altera unilateralmente o acordo do Brexit (o chamado Acordo de Saída) e põe em risco as atuais negociações comerciais entre o país e o bloco europeu.

A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, anunciou que a UE enviou uma notificação formal ao governo britânico, dizendo que este é o “primeiro passo em um procedimento de infração ”. Ela destacou ainda que Londres tem o prazo de um mês para “enviar suas observações”.

O projeto, chamado de Lei do Mercado Interno, foi aprovado na última terça-feira pela Câmara dos Deputados do Parlamento britânico e enviado à Câmara dos Lordes. Embora os próprios ministros do governo de Boris J ohns onre conheçam que alei infringe o direito internacional, o premier defende que o projeto tem como objetivo proteger o livre comércio entre as regiões do Reino Unido, se não houver um segundo acordo sobre as regras de comércio que vão vigorar entre o paí se o bloco quando o período de transição do Brexit terminar em dezembro.

NEGOCIAÇÕES COMPLICADAS

Pouco depois do anúncio da UE, um porta-voz do governo britânico declarou à imprensa que Londres “responderá no momento apropriado” à notificação formal de Bruxelas, mas afirmou que o país está disposto “a trabalhar ao lado do comitê conjunto para achar uma solução”.

— Precisamos criar uma rede de segurança para proteger a integridade do mercado interno do Reino Unido —justificou o porta-voz.

O anúncio foi feito no momento em que europeus e britânicos mantêm em Bruxelas uma complicada negociação para definir como será no futuro o comércio bilateral, mas as declarações de Von der Leyen refletem o pessimismo geral sobre a possibilidade de um entendimento.

—A lei, por sua própria nat ur eza,éu mar up turadas obrigações de boa-fé estipuladas no acordo. Se for adotada da maneira co moestá, alei estará em total contradição com o protocolo para Irlanda e Irlanda do Norte — disse Von der Leyen, ao criticar o projeto.

A UE já havia estabelecido prazo até o fim de setembro para que o governo britânico eliminasse da lei as “cláusulas problemáticas”, o que não foi respeitado coma aprovação do texto por umadas Casas do Parlamento britânico.

—O prazo terminou ontem (quarta-feira). Os pontos problemáticos não foram eliminados — lamentou a presidente da Comissão Europeia.

Em nota oficial, a comissão recorda que tanto a UE como o Reino Unido são obrigados a “cooperar de boa-fé” e a aplicar o que foi acertado. O comunicado lembra ainda que Londres “iniciou um processo em que, se alei for aprovada, impedirá a implementação do Acordo de Saída”.

PARA A UE, PRIORIDADE

O projeto de lei estimulado pelo governo britânico modifica a aplicação de tarifas e controles alfandegários na Irlanda do Norte, previstos no acordo. Se as partes não chegarem a um acordo comercial até o final de outubro, fontes europeias consideram que será muito difícil conseguir um entendimento sobre a relação pós-Brexit até o final do ano.

Também ontem, o chefe de negociações da UE para o Brexit, Michel Barnier, disse no Twitter que o acordo de divórcio do Brexit é uma das principais prioridades do bloco e deve entrar em vigor .

“A implementação total e efetiva do Acordo de Saída sempre será uma prioridade absoluta [para a UE]“, escreveu Barnier. “[O pacto] é o resultado de longas negociações UE-Reino Unido e a única forma de proteger o Acordo da Sexta-Feira Santa, garantindo paz e estabilidade na ilha da Irlanda.”

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O alegre mestre da política que virou um premier triste

Mark Landler

Stephen Castle

02/10/2020

 

 

Pressionado por pandemia, rebeliões no partido, divórcio e problemas financeiros, Boris Johnson perde apoio e adota tom mais contido

O premier britânico, Boris Johnson, gosta de se apresentar como um pirata, acenando com um punhal e zombando de convenções enquanto conduz o Reino Unido a um futuro desconhecido. Atualmente, no entanto, ele se parece mais com uma versão moderna do capitão William Bligh —que enfrentou o famoso motim no navio Bounty, em 1789.

A última revolta foi dias atrás, quando cerca de 80 membros do Partido Conservador ameaçaram votar uma medida que exigiria do governo obter a permissão do Parlamento para novas medidas anti-Covid-19.

A briga feia de família é um atestado de sua posição diminuída. Nove meses depois de liderar os conservadores em uma vitória esmagadora nas eleições gerais, as pesquisas mostram que Boris, de 56 anos, desperdiçou apoio no partido, cedeu terreno à oposição e perdeu a aprovação do público.

O alegre mestre da política britânica deu lugar a uma figura mais sombria e impaciente num cargo que não seguiu o caminho que ele e qualquer outro esperavam.

—Pode-se entender por que ele está exausto : quase o perdemos —disse Crispin Blunt, um deputado conservador, referindo-se à séria luta de Boris com a Covid-19, que o levou a uma UTI em abril e gerou rumores de que nunca se recuperou totalmente.

Mas, em vez de curar o país após as guerras do Brexit, disse Blunt, um círculo de conselheiros poderosos em torno do premier está mais empenhado em alimentar guerras culturais — dividir ainda mais um país que precisa desesperadamente de unidade.

EX-PREMIERS CRITICAM

Além disso, dizem os críticos, o governo de Boris Johnson demonstrou incompetência nas principais questões que enfrentou: sua condução errática das regras de isolamento, o tratamento cruel de alunos cujos exames de admissão à faculdade foram interrompidos pela pandemia e sua abordagem inepta das negociações com a UE.

Duas semanas atrás, os três ex-primeiros-ministros conservadores vivos condenaram a lei que pode alterar o Brexit, e Boris foi forçado a reprimir mais uma rebelião no Parlamento. Mesmo como tática de negociação, ameaçar alterar o pacto pode sair pela culatra. Para analistas, Boris terá agora que fazer concessões mais significativas a Bruxelas para chegar a um acordo.

Boris rejeitou sugestões de que ele e seu governo não operam a todo vapor. Mas com os novos casos no Reino Unido chegando a mais de 5 mil por dia, ele está encurralado entre as terríveis advertências de conselheiros médicos de que uma segunda onda pode chegar a 50 mil casos/ dia, e as advertências terríveis de ministros e parlamentares conservadores sobre os danos que outra quarentena causaria à já abalada economia.

O fluxo de más notícias corroeu a popularidade de Boris e do partido. Em abril, quando saiu do hospital, era bem avaliado por 66% das pessoas, segundo o instituto YouGov, contra 35% agora.

Por trás das dificuldades políticas de Boris estão boatos sobre sua vida pessoal —ele teria se queixado de estar sob pressão financeira desde o recente divórcio da segunda mulher. Como premier, ganha 150 mil libras por ano (R$ 1,1 milhão), mas costumava ganhar muito mais como colunista de jornal, autor de livros e palestrante pago. O jornal The Times noticiou que, quando se tornou premier, seus vencimentos anuais caíram em mais de 670 mil libras (R$ 4,8 milhões).