O globo, n. 31836, 05/10/2020. Sociedade, p. 10

 

Para ex-ministros, falta de liderança agravou surto de Covid-19 no Brasil

Rafael Garcia

05/10/2020

 

 

Evento promovido pelo Instituto Questão de Ciência reuniu sete nomes que já ocuparam a pasta da Saúde, além de médicos e cientistas que falaram sobre O momento atual da pandemia

Em um evento on-line que reuniu sete ex-ministros da Saúde, todos apontaram a falta de liderança e coordenação da atual gestão da pasta como responsável pelo agravamento da epidemia de Covid-19 no país.

Promovido pelo Instituto Questão de Ciência, o debate virtual anteontem com sete gestores públicos que já ocuparam o cargo foi uma das atrações do “Dia C de Conscientização da COVID-19”, ciclo de seminários que reuniu também médicos e cientistas para disseminar o conhecimento produzido até agora sobre o novo coronavírus.

Na mesa com os ex-ministros estavam José Gomes Temporão, Arthur Chioro, Alexandre Padilha, Humberto Costa, José Saraiva Felipe, Agenor Alves e Nelson Teich.

Cada um deles expôs diferentes críticas à atual gestão. Um ponto comum entre os participantes é o de que o atual ministro, general Eduardo Pazuello, não estaria conseguindo articular uma ação coordenada para mitigar a epidemia de Covid-19.

—Felizmente temos um sistema de saúde que é nacional, mas é descentralizado, e apesar da absoluta ausência do Ministério da Saúde, especialmente depois da saída do ministro Teich, os estados e municípios foram capazes de tocar esse processo para frente por conta própria — disse Costa, o primeiro a falar no evento online

Teich, único egresso da gestão Bolsonaro no evento, disse que não encontrou condição para trabalhar bem nas quatro semanas em que foi ministro, entre abril e maio.

— O ministério tem que ter papel de liderança e coordenação, mas isso não é coisa que você pode fazer da noite para o dia.

O médico sugeriu que o governo do qual participou politizou a pandemia.

— Sem uma gestão suprapartidária você não vai conseguir colocar a saúde da sociedade em primeiro lugar.

Os outros ministros que participaram do debate ocuparam cargos nos governos Lula e Dilma, entre 2003 e 2016. Temporão foi um dos que mais fez críticas à atual gestão, à qual chamou de “negacionista”.

—Existe uma negação da ciência, com falsas promessas propagandeando medicamentos para Covid-19 que não têm efeito.

Padilha fez críticas mais diretas à gestão de verbas para enfrentamento da pandemia, dizendo crer que recursos estão sendo alocados de forma lenta e mal planejada.

—Com a emenda do teto de gastos, o SUS será incapaz de garantir a reposta no cuidado à população brasileira —afirmou.

Outros ministros manifestaram também preocupações com a política de comunicação do governo federal para a Covid-19, dizendo temer que a atual redução dos casos leve a um movimento de relaxamento das políticas de distanciamento social e a uma segunda onda da epidemia.

A falta de coordenação para uma política nacional de distribuição de vacinas também foi um ponto de preocupação.

 ‘DOENÇA DA SOCIEDADE’

O evento do IQC reuniu também médicos e cientistas que falaram sobre o momento atual da pandemia e o conhecimento acumulado até agora sobre o novo coronavírus.

Denise Garrett, do Instituto Sabin (EUA), e Otavio Ranzani, do Instituto de Saúde Global (Espanha), falaram sobre segunda onda da Covid-19, que deve se abater sobre o Brasil com o relaxamento das medidas de distanciamento em muitas cidades.

Daniel Lahr, da Universidade de Massachusetts (EUA), falou sobre evidências mostrando que as máscaras faciais ajudam na prevenção da Covid-19.

Júlio Croda, infectologista que ajudou a desenhar o plano de combate à Covid-19 antes de deixar o governo federal, defendeu o autoisolamento de pessoas sintomáticas como ferramenta para contenção da epidemia, num cenário em que os resultados de diagnósticos ainda demoram para sair.

Margareth Dalcolmo, pneumologista da Fiocruz, e Mauro Schechter, infectologista da UFRJ, contaram como foi a experiência deles próprios ao contraírem Covid-19. Os dois expuseram o consenso atual de tratamento da doença, que consiste em medidas de suporte, e afirmam que não há ainda um antiviral que tenha demonstrado eficácia real no combate ao novo coronavírus.

O evento foi organizado pela cientista Natália Pasternak, colunista de O GLOBO e presidente do IQC, como contraponto ao “Dia D” do governo, criticado por ela.

— As informações que deveriam vir dos órgãos de comunicação do governo e do Ministério da Saúde estão vindo de forma atrapalhada, confusa e muitas vezes errada — disse.

— É preciso que o público entenda que Covid-19 é uma doença da sociedade, não apenas uma doença do indivíduo.