O globo, n. 31838, 07/10/2020. País, p. 4

 

Um 'ministro" em campanha

Natália Portinari

Naira Trindade

Julia Lindner

Aguirre Talento

07/10/2020

 

 

Antes de sabatina, Kassio defende a senadores prerrogativas do Congresso

 Indicado pelo presidente Jair Bolsonaro para o Supremo Tribunal Federal (STF), o desembargador Kassio Marques intensificou a campanha junto a senadores, participou de reuniões virtuais e presenciais e centrou seu discurso a quem vai aprovar ou não seu nome na defesa de um protagonismo do Congresso. Segundo ele, prisão em segunda instância, reeleição para as presidências de Câmara e Senado e aborto são temas que cabem ao Legislativo, e não ao Judiciário. A sabatina de Kassio na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado foi marcada para o dia 21, e a expectativa é que a votação em plenário ocorra no mesmo dia.

Em reunião fechada com seis senadores, ontem, Kassio pontuou que, ao afirmar, em entrevista, que a aplicação da prisão após a sentença em segundo grau não era “automática”, estava apenas interpretando a jurisprudência fixada pelo STF na ocasião — a Corte alterou o entendimento depois. Segundo ele, no entanto, o tema agora é de responsabilidade do Congresso. Uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) está tramitando na Câmara dos Deputados, mas a comissão especial responsável pela análise segue sem funcionar, em função da pandemia.

— O Supremo Tribunal Federal entendeu de forma diversa, em um momento posterior, e essa matéria está agora na competência do Congresso Nacional. Até para manter coerência com o que eu disse no início, eu tenho uma natureza de juiz daqueles que respeitam a decisão do Parlamento. O que o Parlamento brasileiro decidir será aplicado. É a Casa que vai definir os rumos dessa matéria —disse.

Ao ser questionado sobre a Lava-Jato, Kassio evitou fazer comentários específicos sobre a operação, mas destacou ser favorável ao combate à corrupção.

Em outras reuniões, ele já havia defendido que a possibilidade de reeleição para o comando da Câmara e do Senado seja discutida “interna corporis”, ou seja, no âmbito do Congresso, sem interferência do Poder Judiciário. A hipótese está sob análise do STF, porque o PTB apresentou uma ação pedindo que seja declarada inconstitucional qualquer reeleição. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), articula para buscar um novo mandato, o que atualmente não é permitido. Kassio tem adotado posicionamento semelhante em relação ao aborto, tema caro ao governo Bolsonaro. Ele já disse a parlamentares que, se a Câmara e o Senado ainda não legislaram a respeito, é porque o assunto ainda não está maduro suficiente para avançar, não por omissão das Casas.

No rito tradicional de “beija-mão”, o desembargador tem falado com senadores de diferentes tendências. Ontem à noite, por exemplo, ele saiu de uma reunião com o senador Ranfolfe Rodrigues (RedeAP), líder da minoria, para um jantar no apartamento de Kátia Abreu (PP-TO), com

senadores de vários partidos.

Fontes próximas ao Planalto afirmam que o nome de Kassio chegou a Bolsonaro por meio de um esforço conjunto entre o advogado Frederick Wassef e o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho do presidente.

Wassef já trabalhou na defesa de Flávio e, há alguns meses, teve um encontro com o desembargador, quando o magistrado ainda estava em campanha para o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Wassef e Flávio, então, levaram o nome de Kassio como sugestão ao presidente.

Procurado, Wassef disse que não iria comentar —Kassio também foi questionado e não se pronunciou. A informação de que Wassef recomendou o nome de Kassio a Bolsonaro foi publicada pelo site “O Antagonista” e confirmada pelo GLOBO.

ARMAS EM CASA

Na reunião que teve ontem com senadores, ele foi perguntado sobre a possível ajuda de Wassef e respondeu afirmando ser fantasiosa a versão de que seu nome teria sido levado a Bolsonaro pelo presidente do PP, senador Ciro Nogueira (PI), mas sem citar o nome do parlamentar. O Palácio do Planalto o apresentou a senadores como uma indicação de Ciro e Flávio, mas Kassio ressaltou que a escolha foi “exclusiva do presidente Bolsonaro”.

—Eu cheguei averna imprensa uma assertiva de que uma determinada pessoa me levou ao presidente, e o diálogo que foi travado. Em que pese o sofrimento que eu tenho passado esses dias, é um momento hilário do dia, porque eu não sei a quem atribuir tanta criatividade. Não foi esse exemplo que o senhor citou (de Wassef ) —disse.

Em 2019, Kassio escreveu sobre uma decisão do ministro do STF Dias Toffoli que favoreceu Flávio. Publicado na revista “Justiça & Cidadania”, o artigo elogia a decisão que suspendeu, apedido deWassef, investigações com dados do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf ) compartilhados sem autorização prévia do Judiciário —a liminar de Toffoli foi derrubada posteriormente.

Na mesma reunião com senadores, Kassio revelou ter duas armas em casa, para “proteção pessoal”. Ele disse que não tem o hábito de andar armado, mas que chegou a viajar armado ao interior do Piauí “uma ou outra vez”.

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Promessa de pastor no STF atenua críticas a Bolsonaro

Bernardo Mello

Bruno Góes

Gustavo Schmitt

07/10/2020

 

 

Líderes evangelicos avaliam que fala de presidente foi aceno a fiéis, após indicação mal recebida para vaga de Celso de Mello

 A promessa feita pelo presidente Jair Bolsonaro anteontem de escolher um “pastor” para a vaga que se abrirá no Supremo Tribunal Federal (STF) em julho de 2021, com a aposentadoria do ministro Marco Aurélio Mello, apaziguou as críticas de lideranças evangélicas à indicação do desembargador Kassio Marques.

Para lideranças ouvidas pelo GLOBO, a declaração de Bolsonaro foi uma tentativa “mais de agradar aos fiéis” do que à cúpula das igrejas, mas o aceno foi entendido como um reconhecimento do presidente de que “agiu mal” ao ignorar a própria promessa de que apontaria um nome “terrivelmente evangélico” ao STF.

Líderes das principais denominações evangélicas, apesar do descontentamento, já vinham evitando criticar Bolsonaro abertamente. A exceção mais notada foi o pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, que divulgou um vídeo para criticar a conduta do presidente. Bolsonaro afirmou na semana passada que uma “autoridade do Rio” tentava emplacar um nome no STF. No vídeo, Malafaia rebateu a versão e afirmou ter levado ao presidente, em setembro, uma “lista tríplice” assinada por líderes de diferentes igrejas.

Segundo um parlamentar ligado a uma liderança evangélica, o “comportamento mercurial” de Malafaia, fruto de seu temperamento e de sua “intimidade” com Bolsonaro, dificilmente é seguido por outros líderes.

A Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd) divulgou nota na segunda-feira em apoio a Kassio Marques e disse que o desembargador pode ajudar a Corte a “cumprir a missão constitucional”. Parlamentares do Republicanos, partido próximo à Universal e para o qual Bolsonaro vem acenando com apoio nas eleições de Rio e São Paulo, não atacaram a indicação.

Membro da Assembleia de Deus de Madureira, o deputado Cezinha de Madureira (PSD-SP) disse que já vê Kassio como “cristão, católico e conservador”.

— Não estamos tristes com a indicação. E creio que ele será alinhado na defesa da pauta de costumes —afirmou.

Já o deputado Roberto de Lucena, pastor da Igreja O Brasil para Cristo, afirmou que os líderes que adotaram a acautela acertaram:

—Foi uma atitude acertada da maior parte em não se manifestar, e sim aguardar o encaminhamento e avaliar o currículo do desembargador.

Líder, em Belém, da Assembleia de Deus, o pastor Samuel Câmara destacou que respeita a escolha do presidente, mas admitiu que fica com o “pé atrás” sobre a promessa de um ministro evangélico em 2021:

—Ele (Bolsonaro) usa essas palavras para manter viva a esperança de um grupo e tentar diminuir a pressão. Mas, ao mesmo tempo, levanta dúvidas se vai acontecer.